Diário do Cardês

20/04/2011 Brasília – 11hs

Aqui de alguma maneira se encerra uma fase e começa outra. Esses anos de pré-produção e espera de financiamento traziam um misto de apreensão e resignação. A palavra mágica era captação. Diversas investidas, viagens, reuniões e dinheiro gasto. Sem contar que durante uma renovação de pronac, nosso projeto ficou esquecido na mesa de um parecerista do minc que havia mudado de serviço. Até que conseguimos. Lei Rouanet, Rosangêla da Silva, Eletrobrás e todo o trabalho de mais uma penca de gente.

Descer nesse aeroporto de Brasília hoje, minha cidade natal, é um marco. Chegar em Cavalcante logo mais, outro. A cada metro avançado põe-se mais um frame neste filme em construção. Um frame é a menor parte de um filme. Se filmado em película, algo cada vez mais raro hoje em dia, cada segundo é formado por 24 fotogramas ou frames, palavra em inglês para quadro. O cinema é a verdade 24 quadros por segundo, segundo Godard. Ou a mentira 24 quadros por segundo, segundo Fassbinder. Você escolhe. No meu caso filmo digitalmente, a 30 quadros por segundo. E um frame pode ser o início do sorriso de alguém com os olhos brilhando na frente da câmera, levando pra tela a certeza que atrás desta câmera tinha um cara feliz.

Eu e Baxter aguardamos o motorista Nildo, que nos levará a Cavalcante, onde nos encontraremos com Dedé e Flor. De volta ao bom e velho hotel FM, onde nos hospedamos e nos alimentamos com o apoio da Secretaria Municipal de Turismo e Prefeitura Municipal. A noite foi pra por a prosa em dia, comprar suprimentos para a viagem do dia seguinte e descansar da tensão dos últimos dias de produção em Belo Horizonte. A viagem está começando.

Na foto o começo da minha coleção de nuvens.



21/04/2011 – Cavalcante / Vão de Almas – Quinta-feira.


Feriado mas nem parece. Daqui pra frente pelos próximos 3 ou 4 meses rompe-se a fronteira entre os dias úteis e os outros. Qualquer dia é o dia que eu pensar que seja, à medida que o trabalho, a pesquisa e a diversão se fundem. Essa dilatação temporal do viajante é ótima. Saímos de Cavalante por volta das 8h45, seguimos com o Beto Baiano numa Mitsubishi L 200, com o apoio da Araí Turismo, com destino ao Vão de Almas. A Canon 5D ainda está em fase de “aclimatação”, ainda termino de ler o manual e faço testes.

Momentos antes da partida para o Vão de Almas.


Nos acompanha Bel Kalunga, nossa produtora local. Ela é nascida da comunidade do Engenho e divide seu tempo entre a cidade e o quilombo, realizando um importante trabalho na Associação dos Guias Kalungas, da qual é presidenta.

Nossa primeira entrevista foi com Zezinho. Morador do Vão, sua casa fica em um local estratégico e lindo: a barra do rio Paranã e do rio Branco (também chamado um pouco mais acima de rio das Almas). Ele tem participado dos cursos para os guias e está esperançoso com um possível aumento do fluxo turístico na região.

Zezinho, nosso amigo e guia no Vão de Almas

Na parte da tarde visitamos o sr. Miguel, morador do outro lado do rio Paranã. Foi nosso segundo personagem. Passa por um momento de tristeza pela perda do neto e a conversa seguiu até onde ele se sentiu a vontade para falar. Gostou muito da nossa visita, demos boas risadas e também nos emocionamos. Ficamos de voltar outra hora para mais histórias.

O set de equipamento montado para esse trabalho ficou ótimo. Levamos duas 5D's a tiracolo. Uma comigo e outra com Dedé, o que nos dá uma versatilidade de fotografar ou filmar com uma qualidade que até então não tínhamos experimentado. A captação de áudio fica a cargo do Zoom, aparelhinho que grava som estéreo em até 4 canais. Super compacto. Sua operação é revezada entre a equipe, mas fica normalmente a cargo de Flor, que faz nossa assistência de direção e aguarda sua dupla de trabalho chegar, meu irmão Ton. Bom retorno às origens, me sinto como uma criança na manhã de natal com seus brinquedinhos novos!

Nesses próximos 20 dias vamos tecendo a teia cinematográfica kalunga.



22/04/2011 – Vão de Almas – Sexta-feira

Amanhecemos no Vão de Almas. A noite foi iluminada por uma lua minguante que nasceu lá pelas 23hs, já estávamos recolhidos ao nosso acampamento – uma cobertura de sapê que Zezinho construiu a 50 mts de sua casa para receber turistas.


Hoje tradicionalmente por ser sexta-feira santa os kalungas ficam mais quietos. Chamam esses dias de “dias grandes”. Evitam se banhar, trabalhar, pescar... Saímos de barco para visitar dona Procópia, uma das principais líderanças kalunga. Reclamou que as pessoas vão lá, tiram fotos, fazem teses e somem sem deixar rastro, foto ou din din. Explicamos o filme da Rota do Sal, que tem como objetivo levantar depoimentos a cerca desta busca do sal pelos kalungas em Belém, refazer o trajeto a remo pelos rios Paranã e Tocantins, para ter contato intenso com a população ribeirinha e também, através das histórias que quiserem nos contar, amplificar para o Brasil e o mundo o exemplo de resistência desse povo.
Fim de tarde no rio Paranã

Zezinho, nosso anfitrião, vai dando as dicas de possíveis personagens para o filme. Cruzamos os com nossa pesquisa anterior de leituras e vindas ao Kalungas e vamos navegando pelo rio Paranã, descendo nos barrancos e caminhando até a casa do próximo entrevistado. As estradas nos Kalungas são em sua maioria transitáveis por veículos 4x4.

A maior parte dos kalungas pratica a agricultura de subsistência. A base da alimentação é composta por madioca (utilizada de diversas formas), arroz, feijão e abóbora. Utiliza-se o óleo de coco na cozinha, o confere um sabor diferente do que estou acostumado na comida, bem gostoso.


Coisas para filmar: artifício / bruaca / as casas / sussa


23/04/2011 Vão de Amas – Sexta-feira


Pela manhã seguimos para a roça de arroz da família de Zezinho. Eles foram conosco, nos mostrar como é feita a colheita do cereal. A colheita principal foi feita a cerca de um mês. Nessa o arrozal é derrubado, depois batido, os grãos colocados para secar e ensacados para o consumo durante. Essa segunda colheita geralmente não é feita e os grão servem de alimento para os pássaros. O arroz vai sendo pilado na medida em que vai sendo consumido. A palha do arroz serve de alimento para o gado na seca, misturado com o bagaço da cana, também plantando pela família. Tudo vai fluindo em sincronia, como faziam seus antepassados. Vez ou outra surge uma nova técnica, como essa de colher o arroz por derrubada, que substitui a técnica que nós filmamos, que é a colheita por cachinhos.

Depois da colheita seguimos para a casa de d. Eva, mãe de Zezinho. Conversamos bastante. Nos mostrou com orgulho seu caderno amarelo, onde anota todos os nomes das mães e crianças que ela ajudou a por no mundo como parteira. Depois da entrevista os netos da d. Eva, Marconi, Luiz Carlos e Aguinaldo curtiram tirar umas fotos. Soltei as duas câmeras na mão deles e eles ficaram se divertindo. São potenciais alunos para oficina de videopoesia que pretendo realizar nos kalungas. Marconi sugeriu que fizéssemos uma foto um do outro ao mesmo tempo! Foi massa brincar com eles. Marconi levou jeito e tirou boas fotos. Deve ter seus 7 anos. Espero ansioso nosso retorno ao Vão de Almas, de onde vamos partir para jornada a Belém. Devemos ir pro vão já com os caiaques por volta do dia 8 ou 9 de maio.

 Eu e Marconi na foto da foto da foto.

Luiz Carlos, Aguinaldo e Cardes. Foto: Marconi


Seguimos nossa busca pelas histórias do rio e do sal. A maior parte dos kalungas se recordam da busca do sal em Barreiras e Formosa. Mas estamos na pista dos antigos, que ainda trazem na memória os relatos da busca do sal em Belém do Pará.

Enquanto escrevo estas linhas, na porta da casa do Zezinho, seu filho caçula se aproxima do pai. Zezinho fala que ele tossiu muito à noite e que isso não é bom. Faz um cafuné no garotinho, que abraça o pai. Eu fico olhando esse belo momento e pensando que quero ter um filho o quanto antes! Instinto paternal à flor da pele. Mal posso esperar.

Depois do almoço seguimos de barco para a casa de seu Elotério, às margens do rio Paranã. Depois seguimos para a fazenda da Barra, onde conversamos com Cláudia, neta do seu Miguel. Cláudia é nova. Está estudando na escola da comunidade. Disse que seu sonho é ir para a universidade. Fala-se por aqui na mobilização para a construção da universidade kalunga. Espero que dê certo. Estamos tentando encontrar a professora Maria de Fátima, se não me engano, que poderá nos falar bem em que pé está esse processo.

Retornamos para nossa base para mais tarde seguir para uma festa kalunga, com reza e rastapé. Tirei umas sequências de fotos do povo dançando que tem grande chance de ir pro filme num stop motion.
Bonito pôr-do-sol após um dia de gravações. 


 Caminhada para nossa base. Fim do expediente.


24/04/2011 – Vão de Almas – Domingo


Dia de descanso. Por o diário em dia, pensar nos próximos passos da filmagem, curtir o sossego da casa do Zezinho e caminhar 50 metros de hora em hora pra refrescar no rio Branco. Vida dura.


Saímos pela manhã para um rápido passeio. Durante a travessia do rio conversamos sobre a mineração no Paranã. Algumas famílias kalungas são mineradoras, mas o fazem de maneira tradicional, na bateia, sem a utilização de mercúrio. Zezinho já constata que alguns peixes estão aparecendo mortos no rio e rio abaixo existem diversas balsas. Vai ser triste mas vamos ver muito disso ao longo do trajeto. A Associação Mãe planeja fazer uma nova denúncia ao Ibama, que cerca de um mês atrás esteve no local e destruiu os equipamentos dos mineradores invasores de terras kalungas. Do outro lado do rio acompanhamos Zezinho até a casa de seu padrinho, o senhor Simplício, onde recarrega a bateria de suas lanternas e celular. A luz para todos ainda não chegou do outro lado rio. Assim os kalungas brincam que o programa do governo federal chama-se na realidade “luz para quase todos”. Mas imagino ser uma questão de tempo até que o sítio todo esteja ligado à rede elétrica.

Balsa em atividade clandestina no rio Paranã.Dentro do sítio histórico Kalunga.


25, 26 e 27/04/2011 – Vão de Almas e Cavalcante

Retornamos à nossa base na cidade de Cavalcante, novamente com o importante apoio da Araí turismo. Até quarta-feira ficamos por aqui organizando as fotos e o material audiovisual. Lavando umas roupas também. Pondo leituras e escritas em dia. O trabalho tem sido intenso e gratificante. Uma escolha, não? Poder escolher o que se vai fazer da vida é um privilégio fruto de um planejamento que se faz quase sempre sobre risco da incerteza do futuro. Tem dado certo. E sinto que vai continuar funcionando. Sigo fazendo meus filmes, inventando coleções de nuvens e colhendo ideias. Que a fonte nunca se seque.

A convivência da equipe está em harmonia e as pessoas que estão aqui tem um papel importante no filme. Eu e André na direção. Gustavo Baxter mandando bem nas fotografias, que se dividem entre as fotos em geral e o making of. Flor com sua simpatia e carinho tem sido a responsável pelo som. Bel Kalunga, na produção local tem ajudado nossa pesquisa local e circulação pela comunidade. Agradeço a competência da equipe em Belo Horizonte. Rosângela da Silva quente na produção executiva. Cláudio Aguiar e Emerson no planejamento logístico da expedição. Ton editando as pílulas enquanto aguarda sua vinda. Marcela Oliveira, estagiária do projeto, tem dado um suporte importante para todas áreas da produção. Gabriela Rodrigues, pesquisadora e nossa produtora de campo, aguardo pela sua chegada, que vai ajudar bastante por aqui. Meu pai, Wellington Amâncio, que fez uma consultoria médica para a expedição e nos presenteou com um kit de primeiros socorros e medicamentos. E Marne, Raful e Valton da Travessia.


28 e 29/04/2011 – Engenho – Quarta-feira e quinta-feira

Conseguimos driblar as dificuldades de circulação na região e conseguimos uma carona para o Engenho. Nessa comunidade está sediada a Associação Mãe, que junto com outras associações kalungas luta pelos direitos. Cirilo, Cesariano e Tico foram os entrevistados dessa fase e com seus depoimentos traçaram um panorama político contemporâneo dos kalungas. A principal demanda atual é titulação das terras. Uma solução encontrada é título de propriedade coletiva da terra. O que garantiria às novas gerações a posse da terra ocupada pelos antepassados, evitando que a mesma seja vendida, caso sejam emitidos títulos individuais de posse.


Cachoeira de Santa Bárbara. Comunidade do Engenho II


Gravei uma entrevista densa com Cesariano. Me contou o problema com os grileiros diminuiu muito atualmente. Mas que ainda recebem investidas. Esse ano mesmo um sujeito que veio de Alto Paraíso, como diria Estamira “esperto ao contrário”, tentou tomar a cachoeira de Santa Barbára. Sorrateiramente construiu uma casinha na entrada da cachoeira e se preparava para cobrar ingressos dos turistas. Porém os kalungas, se juntaram, e num grupo de 43, derrubaram a casa. As autoridades deram razão aos kalungas. Como eu gostaria de estar lá nesse dia, para filmar a casa caindo e claro, ajudar a por-la abaixo.

 Arco-íris.


Gravamos também com dona Eleutéria. Muito simpática, nos deu o privilégio de ouvir boas histórias e no final da entrevista nos mostrou suas habilidades com os instrumentos de produção de linha de algodão: um descaroçador super criativo feito com galhos de árvore, um arco de desfiar o algodão e o fuso, que transforma-o numa linha.

Retornamos no Engenho na sexta-feira para mais uma pequena temporada de escritório em Cavalcante. Hospedados na Pousada Sol da Chapada, podemos ter acesso à internet 24hs, o que deu uma agilidade ao trabalho, principalmente para subirmos as fotos e vídeos e mantermos contato com a base em BH.


29, 30 e 1/05/2011 – Cavalcante – sexta à domingo

Temporada de trabalho. Temos ficado enfurnados na pousada. Finalizei a pílula número 3 que mostra o início das filmagens da Rota do Sal Kalunga. Vamos produzir outra nos próximos dias. A idéia é que essas pílulas alimentem um pouco a curiosidade dos que nos acompanham pela internet e sirvam também de material para a imprensa.

Ontem eu e Dedé fomos numa reunião com Beto Baiano, Mochila (apelido do Joaquim) e Mirian. Os dois últimos lideranças da comunidade Vão do Moleque, para onde nos dirigimos nessa terceira etapa de filmagens nos Kalungas. Acertamos questões relativas à alimentação, hospedagem e transporte com mulas ou cavalos, pois alguns de nossos personagens mapeados na região moram longe da estrada.

Agora é aproveitar o resto de domingo, talvez passear pela cidade à tardinha para algumas fotos e tomar um açaí pra refrescar o calor do centro oeste.

1/05/2011 – Cavalcante / Vão do Moleque

Segunda cedo preparamos nossas coisas, compramos algum alimento extra para a viagem e nos preparamos para a viagem de cerca de 4 horas para o Vão do Moleque. Novamente com o apoio da Araí Turismo, que tem sido uma grande parceira nessa fase do projeto.


2/05/2011 – Cavalcante / Vão do Moleque

Seguimos para o Vão do Moleque, com destino a casa do Mochila (sr. Joaquim, tem esse apelido por que veio de uma comunidade com esse nome). Levamos gasolina para o gerador, comida e toda a tralha cinematográfica. Nessa fase de filmagem no kalunga, alternamos as idas às comunidades para gravar e a permanência em Cavalcante para os trabalhos de edição das imagens e fotos, assim como resolver trâmites burocráticos.

 Esposa do Mochila

Fomos eu, Baxter, Dedé, Flor, Mochila, sua esposa e Beto Baiano na pilotagem da L200. Partimos às 14hs e chegamos por volta das 19hs. Arrumamos as coisas, jantamos e ouvimos uma música no celular, sob um céu bastante estrelado, até que o sereno nos mandou pra cama.
 
 Beto Baiano, sra. Mochila, sr. Mochila, Dedé, Cardês e Flor


3/5/2011 – Vão do Moleque – Terça-feira

“Cineadicto”

Ando escrevendo os dias da semana no diário para manter uma cronologia que possa me referenciar no futuro e também para ir mantendo pista dos dias – que andam passando um tanto velozes. Na parede da casa do sr. Mochila, onde estou agora, há dois relógios de ponteiro. Um deles marca 4h39 e está parado. O outro marca 6h34 e o ponteiro dos segundos agoniza nos 47 sem força pra terminar o quarto final da subida e virar 6h35. Há um restinho de pilha e apesar disso o tempo passa. Hoje pela manhã entrevistamos seu Frutuoso, que disse não se recordar de muita coisa. Já d. Pedra se lembrou de histórias interessantes, inclusive sobre a viagem à Belem. Nos contou também sobre um baú que estava ao seu lado e que foi quebrado pelos revoltosos, busca de dinheiro!

Não dormi muito bem essa noite, o colchão era muito fino. Hoje devo passar melhor.

Comprei 3 novelos de fio de linha de algodão kalunga para mandar pra Dani de presente. Acho que ela vai gostar. Vou por no correio assim que possível. A negociação foi feita no estilo antigo… A dona não estava querendo muito vender, pois iria usar dentro de algumas semanas num tear que estava para chegar. Quando disse que minha esposa tricotava cachecóis, colares e outras peças ela se empolgou e queria me dar um de presente. Ao mesmo tempo que apenas um novelo seria pouco para produzir, haviam três cores diferentes e gostaria de pagar pelo produto, pois sei que a vida aqui nunca foi muito fácil. No final fechamos um preço bom em três novelos: um azul, um vermelho e um cru. Há um certo movimento que tenta levar os produtos kalungas para serem vendidos em Cavalcante. O Beto Baiano, da Araí Turismo, leva moringas e farinha, que deixa na cidade e repassa o valor da venda para o produtor.

 Fios de algodão kalunga. Feitos à maneira tradicional.

Na parte da tarde visitamos a casa do seu Epifânio. Um senhor de noventa e poucos anos. Forte e inteirão, nos recebeu vestindo uma roupa da aeronáutica, espécie de farda azul. Com sua esposa, formavam um casal bonito e a casa super bem cuidada deixava a sensação de bem estar ainda maior. Energia boa. A conversa foi na parte de trás da casa, perto do fogão de lenha, que não é utilizado para não deixar a parede suja de fumaça. Para tanto ela utiliza o fogão à gás e o à lenha da casa antiga. Não sei quantas casas foram construídas pelo governo federal no Kalunga, mas vários deles receberam uma. O objetivo é melhorar as condições sanitárias e evitar doenças como a de Chagas, pois muitas casas na região são se pau-a-pique. Sendo o mais tradicional ao que me parece a construção de tijolo de adobe. O telhando feito com folhas de coqueiro nativo é o usual. Não deixa de ser um dos charmes do Kalunga a sua arquitetura. A pequena janela triangular tem por objetivo deixar entrar claridade suficiente para iluminar a casa durante o dia, limitando a quantidade de luz, para proporcionar mais conforto e aconchego, pois do lado de fora o sol é escaldante e brilhante. A bioconstrução kalunga é adaptada a realidade local, pois o adobe mantém a casa fresca durante o dia e aquecida durante a noite. Muitos deles não se adaptaram às novas casas e continuam, nos dias quentes, a dormir na casa antiga, que conservam ao lado da nova.

 Me tornei fã do seu Epifânio. 
Simpatia e altivez em pessoa

A conversa com seu Epifânio foi de arrepiar. Perguntei como o kalunga começou, como chegaram os primeiros moradores… Ele disse que: “quando havia a revolta, quando os negros se cansavam do trabalho e da peia, desciam a serra em busca de uma nova vida”. Ainda bem que estou vivo para ouvir isso, poder gravar e compartilhar dessa emoção com os próximos que tiverem o prazer de ouvir seu Epifânio. Em qualquer lugar do mundo. Que o cinema tem dessas coisas. E muito disso é seu mistério e fascínio, assim como o seu poder de me manter cineadicto.


4/5/2011 – Vão do Moleque – 19hs – Casa do Mochila

“Tropa Sarah Kubitschek”

Saímos cedo, por volta das 9hs, em direção ao Choco. Tem esse nome pois é uma região dos kalungas cercada por várias montanhas e dizem que se parece com um ninho de galinha… E é quente!

A ida para lá foi de mula e cavalo.

 Sol bravo, de derrubar qualquer um

A tropa batizada por Beto Baiano de Sarah Kubitschek nos chamava a atenção pela magreza de alguma delas. Não deu outra, na subida pro “coqueiro” (ponto mais alto da estrada, de onde começa a descida para o Choco) minha égua pediu arrego e se desmantelou no chão, por sorte nada grave, apenas um cançaso extremo. Tivemos que abortar a ida Choco. Nos contentamos em comer paçoca kalunga, que estava muito boa e laranjas, para ajudar na descida de tanta farinha goela abaixo. A paçoca foi pilada à maneira tradicional na noite anterior. Maneira tradicional é modo de dizer, pois o pilão é o único recurso para isso que havia. Alguns fazem no liquidificador, mas no pilão deve ser muito melhor. A velha história da comida feita no fogão à lenha… A noite foi para alguns curarem suas assaduras. Eu saí ileso.


5/5/2011 – Quinta-feira – Vão do Moleque-Cavalcante

Acordamos cedo e voltamos na L200 para Cavalcante. Ela empacou no rio Corrente (onde dizem que é vivente o Roque Santeiro). Tivemos que agir rápido, pois começou a minar água pelos pontos. Arredamos algumas pedras, o rio estava acima dos joelhos. Deu certo e seguimos viagem.

 Desagarrando a L200 das pedras do rio Corrente


6/5/2011 – Sexta-feira – Cavalcante
Nada demais. Trabalho de escritório! Ler emails, resolver questões burocráticas sem as quais o projeto não anda e por aí vaí… Comer frango no almoço, na janta, no almoço e na janta no querido hotel FM. Pra depois comer carne picada no almoço, na janta, no almoço e na janta do dia seguinte!


7/5/2011 – Sábado – Cavalcante

"Uma cerveja antes do almoço"
Eu e Flor ficamos em Cavalcante. Gravamos com a Estér Kalunga. Foi boa a conversa. Dedé e Baxter foram para a casa do Florentino, que era o objetivo da nossa cavalgada de dias atrás. O objetivo era gravar com o Florentino sobre a busca do sal em Belém e registrar uma caixinha de madeira que seu avô ou bisavô trouxera de Belém. A primeira prova material da grande viagem! Valeu a pena o sacrifício da longa viagem, onde a L200 da Araí Turismo foi novamente testada, assim como a perícia da piloto e amiga Cláudia!

Niver do meu pai neste dia, liguei pra ele para cumprimentá-lo. Ficou feliz por conversamos, tem se interessado sempre pelo projeto, às vezes com certa apreensão, típica de quando invento alguma nova aventura para fazer. Tomei uma cerveja Aracê por ele, produzida na cidade.

Cerveja que o chileno Manolo fabrica

A noite, grande apreensão pela demora do retorno, previsto para o fim da tarde. Enfim, por volta das 2h30 da manhã os três chegaram, exaustos de tanto tirar pedras da estrada e até mesmo abrir trechos novos onde esta não existia. Vamos longe pelo nosso filme!


8/5/2011 – Domingo – Cavalcante e Teresina de Goiás

"Salve seu Romão"

Depois do almoço fomos para Diadema, com Beto da Araí Turismo, cujo apoio foi importantíssimo para nosso river movie. Foi ótimo, gravamos com Dete e sua mãe, que falou várias coisas dos tempos antigos. Rimos bem com sua profusão de gestos ao contar a história do artifício e da binga. Depois fui pra casa de seu Romão, pessoa de alma boa, mahatma, dessas que passam uma sensação boa quando estamos por perto. Calmo e sorridente em seus 93 ano. Pena que escutando muito pouco, mas lembrou de várias coisas da Rota. Falou no vapor… Dizendo que algumas vezes os kalungas subiam nos animais até certo ponto do rio e de lá pegavam um tal de “vapor”. Não me recordo das minhas pesquisas anteriores apontarem algum vapor no Tocantins. Sei da existência deles no Araguaia. Da cidade de Paranã em diante devemos ter alguma novidade sobre esse ponto!

 Seu Romão. Ao ficar sabendo que íamos pra 
Belém soltou uma gostosa gargalhada.

9/5/2011 – Segunda-feira – Cavalcante

"No aguardo em Cavalcante"
Nossos caiaques estão em Goiânia. Muito perto. Chegam amanhã ou quarta. Falta isso e alguns últimos ajustes para seguirmos para o Vão de Almas, o ponto de partida da expedição. Fui ao banco assinar uns papéis. Passei de mascate cinematográfico na Aruana Pousada e combinamos um apoio da pousada para o projeto. Bem bacana a Elena, que sempre nos recebe muito bem e é uma entusiasta do projeto. Estou na porta da casa da filha do Mochila esperando ele chegar para gravar um depoimento sobre o festejo do Vão do Moleque. Fiz umas imagens do local onde acontece a festa. São várias cabanas formando um “U” com a boca virada pra igreja, e de fronte a igreja, uma grande área coberta, onde se passa parte da festança, cuja fama alcança o longe.

 Mochila, nosso anfitrião no Vão do Moleque - Kalunga
Durante a gravação com Mochila, aparece um vereador e agente de saúde comunitário, kalunga do Engenho II. Ficou ouvindo a conversa. Perguntei algo pra ele e continuei gravando apenas o áudio, pois a câmera estava guardada. Ele se empolgou e disse “Peraí então”, e se sentou numa cadeira! Eu disse, “peraí também”, e saquei a 5D da mochilha. Foi uma boa entrevista. De mais de 30 minutos. Falou dentre outras coisas da origem do Kalunga, de escravizados que fugiram da mineração. Isso é raro, pois a maioria do povo kalunga, não sabe bem ou desconhece ou não quer falar sobre a formação.
Já era pra gente ter ido pro Vão de Almas, mas os caiaques estavam atrasados. A semana foi de trabalho de edição das pílulas. Estudos e pesquisas.


11/05/2011 – Quarta-feira - Cavalcante

Finalmente os barcos chegaram. Agora a partida de Cavalcante estava próxima. Acertei o carreto para quinta-feira. Enquanto isso perambulações pela cidade. Bem próximo ao hotel havia um terreno baldio transformado num ferro-velho. Sempre ando de olho nos vegetais urbanos, que me inspiraram a fazer o Semeador Urbano e um que saiu de dentro do motor de um carro estava bacana demais.

 Um motor realmente verde e não poluente, 
como nossos caiaques


12/05/2011 – Quinta-feira – Cavalcante – Vão de Almas

"A caminho do rio!"
O caminhão do Jonas, que levaria além dos caiaques, toda a equipe. A viagem para o Vão de Almas foi um pouco apreensiva, pois tinha receio de que algum buraco na estrada pudesse gerar um baque que quebrasse os caiaques, que medem 5,40 metros e não cabiam inteiros na carroceria. A solução foi colocar uma parte deles por cima da cabine. O Jonas veio contando sua vida durante a viagem. Fui na cabine junto com ele e sua namorada ou esposa kalunga. Disse ter ganho muito dinheiro com uma empresa de ônibus, que fazia basicamente o trajeto de uma cidade menor para outra maior, levando pessoas para receberem os benefícios da previdência. O sucesso de seu negócio começou a crescer quando ele começou a buscar na previdência a lista dos beneficiários e o dia do pagamento. Assim ele podia avisar aos moradores que dia eles deveriam ir e já deixava a viagem acertada. Ganhou muito dinheiro, comprou meia dúzia de microônibus. Seu negócio entrou em decadência quando as loterias começaram a fazer serviços da Caixa Econômica, sendo então desnecessárias as viagens dos moradores , que passaram a retirar o dinheiro na própria cidade. Aí foi mudando de ramo até comprar esse caminhão e fazer a rota Cavalcante x Vão de Almas. Cobra R$ 20,00 a passagem e faz o trecho diariamente. Às vezes até duas vezes por dia. Nos dois meses que estava ali, só havia folgado 3 dias! Disse fazer de quatro a cinco mil reais livres por mês. É bom para ele e para os kalungas, uma vez que o motorista que fazia o trajeto anteriormente, após perder o controle do caminhão numa curva e tombá-lo, disse que nunca mais faria o trajeto novamente!

 Parada em frente ao CAT para nos despedirmos de João Lino, 
secretário de turismo, Beto Baiano e Jurandir. Caminhão 
com os caiaques, nossas coisas e a equipe da Rota

Chegamos bem e a fissura era tanta que colocamos os caiaques na água e partimos para as primeiras remadas de teste. Muito boa a impressão inicial, bem leves, boa dirigibilidade etc. Nos acomodamos no já conhecido e aconchegante refúgio da casa do Zezinho.

 Descarregando na casa do Zezinho

13/05/2011 – Sexta-feira – Vão de Almas

 Cláudia, uma de nossas entrevistadas
  Andamos pela manhã em busca dos primeiros contatos que fizemos no Vão. Atravessamos pra o outro lado do rio Paranã para rever seu Miguel e sua neta Cláudia. Levamos de presente as fotos de família que fizemos deles. Gostaram bastante. Flor ficou encarregada das dedicatórias. Cláudia estava com uma dor de dente lancinante e nem pode nos dar atenção. Passar mal num lugar onde o próximo posto de saúde ou farmácia está a 70km de distância é complexo. Sem um transporte disponível para a hora que quiser… 

 De volta à casa do amigo Zezinho, 
nossa base avançada em terras kalungas
Esse é um ponto que as pessoas que moram na roça sempre levantam. Que morar no mato é bom quando se está com saúde. Mas de qualquer forma viver longe da cidade parece ser mais saudável e menos estressante. Emerson fez a gentileza de remar até a casa do Zezinho e voltar com alguns analgésicos de nossa caixa de remédios, organizado e patrocinado por meu pai Wellington Amâncio. Aproveitei a tarde para remar e continuar o processo de aclimatação com os novos brinquedos. É importante estar em sintonia com o equipamento para enfrentar os dias iniciais da expedição.


14/05/2011 – Sábado – Vão de Almas
Acordamos cedo para ir ao Tinguezal. Comunidade do outro lado do Paranã. Conversamos com seu Laurindo. Sua filha estava reclamando, como outros kalungas, que as pessoas vão lá, tiram foto, ganham dinheiro e não voltam mais. Nem pagam por isso. Disse que o pai estava doente do coração e que essas conversas não eram boas pra ele. Ficou um clima meio tenso, mas depois de explicar o projeto ela ficou mais tranquila. E seu Laurindo disse estar feliz por poder contar suas histórias. A palestra foi muito boa e ele se lembrou com riqueza de detalhes da Rota do Sal. No final dei R$ 50,00 para ele comprar alguma coisa. Visitamos a cachoeira com seu filho e voltamos pro Zezinho. 

 Casa típica kalunga, no pé das 
serras da comunidade do Tinguezal


A tarde subi umas corredeiras com o Emerson. Foi massa e serviu para desmistificar um pouco o rio, treinar os braços e a técnica para a viagem. À tarde estava marcada a oficina de videopoesia. Cheguei da remada e fui atrás dos meninos. Escutei os gritos deles vindo da escola. Assuntei com a d. Quintina e ela me disse que os meninos estavam realmente lá. Fui pra lá, no caminho topei com alguns deles já voltando. Perguntei pelo Marconi e companhia. Disseram que estavam na escola mas que já estavam voltando. Apressei o passo pra chegar lá e filmar um pouco do futebol. Mas ele já estavam voltando. Vinham num grupo de 15 ou 20. Ouviram uma música que saia de um pequeno som portátil. Era uma canção evangélica. Uma senhora da igreja vinha com eles, dizendo para eles cantarem alto e para o menino que trazia o som ir bem no meio da turma. Iam para a igreja, onde teriam outra atividade. Sendo assim resolvi fazer a oficina no dia seguinte. Os “crentes”, como são chamados lá pelos kalungas, estão trabalhando na catequização dos moradores. Triste, pois além de todos os prejuízos (de financeiros a morais) que todas as religiões imprimem aos seus adeptos, os “crentes” também proíbem a sussa, que é uma manifestação cultural típica dos kalungas e de outros povos da região norte. Estão bem de conta bancária os “crentes” eu imagino, pois dirigiam uma caminhonete L200 novinha. Gosto muito de Drummond e do seu poema “Cidade Prevista”, onde seu mundo ideal é livre de igrejas. A filosofia, a cultura, a ética e outras coisas suprem muito melhor o papel das religiões.

15/05/2011 – Domingo – Vão de Almas

Depois do almoço consegui reunir as crianças para a oficina. Foi algo bem livre. A câmera já vinha fascinando os meninos e eles estavam loucos para “brincar”mais com ela. Antes do almoço, Zezinho construiu a réplica do avião de buriti, que segundo nos contou, era construído numa versão bem maior, com capacidade para levar uma família inteira. Era usado para fugir da escravidão e tem a ver com a formação dos kalungas. Enquanto gravamos o toques finais da construção do aviãozinho, Zezinho ia nos contando a história que lhe contou seu avô. 

 Meu amigo Emerson, membro da equipe 
Rota do Sal e a meninada do Vão

Segundo muitos nos disseram, os kalungas começaram no Vão de Almas e no Vão do Moleque. Com o avião construído, subiam para o alto de um morro e esperavam um vento forte bater e partiam para viver uma vida liberta em um outro local. De difícil acesso… E assim foi surgindo o Kalunga. Devia ter dias em que era possível ver vários aviões de buritis cruzando os céus, deixando para traz a senzala e a peia, para buscar uma vida nova! 

 Uma das minhas fotos prediletas, feitas numa noite de lua cheia. 
Zezinho e seu avião. Criador e criatura

Essa é de arrepiar. Mitologia kalunga. E pensando nos dias de hoje, esse avião era altamente sustentável e ecológico: feito de material renovável e movido à energia eólica. Passei uma câmera pro Marconi e ele filmou seu pai. À tarde o resto da meninada filmou também. Fiquei de editar um vídeo e mandar pra eles. Talvez volte lá novamente, antes de terminar o mestrado. Foi legal. 


16/05/2011 – Segunda-feira – Vão de Almas

Enfim o dia da partida. Deslizar pelo rio com a força dos meus braços, admirar o pôr-do-sol em cada praia nos fins de tarde, realizar uma ideia de anos atrás, da qual eu nunca havia desistido e sentia que seu sabor mudara enquanto os anos se passaram e eu tentava viabilizar o projeto. Mudou muita coisa. Mas o espírito aventureiro continua com seu braseiro aceso, basta um pequeno sopro para ele se incendiar com o fogo louco das viagens que com certeza alimentam o poder ultrajovem. 

Ah... O dia da partida...

Barcos preparados, partimos pela manhã em direção à casa de d. Procópia. A ideia era gravar com ela, que foi uma das maiores líderes dos kalungas, montou associação e lutou por direitos. Seu sonho é que seu filha siga seus passos e continue firme na batalha. A conversa foi ótima. Falou de várias coisas. No final pediu pra gravar uma reza que ela ia cantar e depois que mandássemos o dvd pra ela. Para que sua família pudesse ver quando quisessem, mesmo após sua partida. Achei ótimo, pois geralmente as pessoas nunca pedem nada, apenas respondem às perguntas. Foi lindo e emocionante, meus olhos se encheram d’água.  É a pílula número 6 No final cantei um versinho de candombe pra ela, dizendo que lá na casa da Flor, que estava junto na hora fazendo o som, também tinham belos cantos. 


Flor remadora e assistente de direção no doc Rota do 
Sal Kalunga, junto com d. Procópia

17/05/2011 – Terça-feira – Rio Paranã



Remamos uns 24 km. Não descemos mais porque Emerson e Dedé precisavam consertar o caiaque deles, que havia rachado no bico, devido a uma topada numa pedra, ainda nos primeiros minutos de remada do dia. Ainda estamos nos habituando ao equipamento. Eu e Flor mandamos bem e passamos ilesos pelas corredeiras. Foi ótimo e assustador enfrentá-las. Desenvolvi a técnica durante a remada. Flor e Emerson já tinham experiência, o que foi útil, apesar de terem navegado em outros modelos de caiaques e canoas. Nos despedimos de Zezinho e Getúlio, que voltaram para casa, depois de nos guiarem pelos primeiros quilômetros da viagem. Agora eramos nós e o rio!



18, 19 e 20/05/2011 – Quarta, quinta e sexta-feira – Rio Paranã



Remando e acampando no Rio Paranã. Acordamos cedo nesses dias e remamos até às 16hs. Faltou água potável e um rango de cokpit gostoso. Fui bebendo água do rio Paranã, que era meio salobra. Passamos por várias corredeiras sinistras. Havia hora que parávamos para olhar o melhor caminho e o melhor caminho simplesmente era o menos cabuloso. Pedras e correnteza forte. Qualquer manobra imprecisa nos nossos caiaques oceânicos Orca, da Eclipse Caiaques, poderia significar uma trombada numa pedra, com danos na embarcação, que dependendo da intensidade, poderiam até inviabilizar a navegação… Dias tensos.

Esses caiaques não são os ideais para esse tipo de rio. São feito de fibra de vidro, numa camada fina. Seu forte é o mar, lagos e rios sem pedras. Ali estavam fora de seu habitat natural e todo cuidado era pouco. Adrenalina pura. Mandamos bem e passamos por todas elas. Algumas vezes as duplas de remo no calor da hora tiveram algumas discussões. Mas normal e no fim do dia sempre comemorávamos cada quilometro avançado.

Numa das corredeiras mais bravas, havia uma curva em S. Devíamos estar a cerca de 14 km/h. No meio da corredeira a força da água nos jogou em direção a uma pedra enorme. Joguei o leme todo na direita, fiz um leme de proa e ainda assim vi a pedra se aproximando cada vez mais no meu lado esquerdo, até como último recurso para evitar a batida, estiquei a mão esquerda, e ao mesmo tempo em que amorteci a aproximação com a rocha, usando meu braço como uma mola, estiquei-o rapidamente dando um impulso na pedra. Vibrei forte dando um grito de alegria e fiquei feliz com a velocidade que consegui responder à situação. Salvos de um encontro com d. pedra. Na minha mão ficou um pouquinho de musgo de lembrança!

Na última noite de rio tive diarréia e vomitei. Acordei com o estômago ultra embrulhado. Também no jantar me empanturrei de salaminho e queijo provolone em excesso, que misturamos no arroz. Depois ovo frito… Acho que foi muita gordura de uma só vez. Não quero ver provolone e salame pelas próximas semanas.

A remada do último dia foi de 40km que demoraram a passar. Estava meio fraco. Flor também passou mal. Remei a base de mamão e dois sonrisal. Enfim chegamos a Paranã. Nesse dia Gabi, nossa produtora, se juntou à equipe. Às 18hs já estava na cama.



20, 21, 22/05/2011 – Sexta-feira, sábado e domingo – Cidade de Paranã


Ficamos pela cidade. No dia seguinte à minha chegada já estava recuperado do mal estar. Por um dia comi apenas bananas, pão de sal puro, suco de uva e água de coco. Deu certo. Me reidratei.

O hotel era bom, assim como o restaurante. Descansei bem da primeira fase. Tivemos boas entrevistas na cidade. Dessa vez preparei um bom lanche de cokpit, com água de coco, geléia de mocotó e passatempo recheado. Minha estratégia nessas ocasiões onde é exigido de meu corpo uma força maior, me alimento constantemente. O segredo é comer pequenas porções em intervalos regulares, de modo que não se sinta fome. Fiz isso no caminho de Santiago e na viagem de bicicleta que fiz de Belo Horizonte para a Chapada dos Veadeiros. Gravamos belas imagens da festa do Divino. Fui no quilombo do Albino. Foi meio triste, d. Brágida estava bem velha e doente. Mas conversou conosco com alegria e sabedoria da terra.



23 e 24/05/2011 – Segunda e terça-feira – Paranã e Peixe



Partida para Peixe. Equipe completa com a chegada da Gabi. Agora a família Rota do Sal segue firme e forte até Belém. Partimos do bar flutuante Bateu Mouche. A prefeita deu o ar da graça e veio nos desejar boa sorte na viagem. Agradecemos o apoio concedido ao projeto. Com o apoio do Corpo de Bombeiros do Tocantins seguimos com o sgt. Lourenço, sd. Ronaldo e sd. Silva Neto. Também o apoio da Naturatins, com seu Carlitos na pilota da lancha a motor. Importante pois ele conhecia bem o rio, dava apoio logístico levando Ton, Gabi e Baxter, bem como os equipamentos e bagagem.







Mais pra frente, em algumas cidades da Rota do Sal, após deixarmos o território kalunga, tivemos notícias de que embarcações a vapor faziam o trecho até Belém. Não sei ainda como era essa relação dos Kalungas com o barqueiro motorizado. Talvez fossem como ajudantes na embarcação, a troco de sal e outras mercadorias.




25/05/2011- Quarta-feira – Peixe

Chegamos em Peixe na hora do almoço. Comemos e fomos para a casa da Isa, secretária de turismo e nossa anfitriã. A cidade nos acolheu muito bem, terra de povo sorridente e hospitaleiro. Tivemos tempo para nos recompor da remada, experimentar a culinária peixense rica nos sabores: bolo mané pelado (conversando com Rosa, uma das melhores cozinheiras da cidade, brinquei que poderia ter o mané “vestido”, com alguma calda ou cobertura por cima. Ela riu e gostou da ideia, disse que eu tinha jeito de quem entende das coisas. Disse a ela que de vem em quando faço minhas alquimias gastronômicas. Nos apresentou também o sirigado, enriquecido com pequi, queijo e ovo caipira, muito bom. Um primo incrementado da “maria izabel”, ou “maria izabé”, como grafa Lisyas Rodrigues em seu livro “Roteiros do Tocantins”, repetindo o modo dizer dos remadores antigos que atravessavam o rio Tocantins em direção à Belém. Arnaldo, secretário de agricultura, nos acompanhou em diversas entrevistas e também contribuiu com relatos sobre a história de Peixe e região, que inclui um personagem lembrado por todos, Bena Queiroz, próspero comerciante da cidade, que comprou um barco a motor e empreendeu diversas viagens à Belém para comprar mercadorias. Gravamos com Mãe Deuzinha, parteira que já pôs no mundo mais de 2.000 “filhos” e é constantemente homenageada na cidade com poesias e faixas e é carinhosamente chamada de mãe por várias pessoas que ela ajudou a nascer. Assim recebeu o título de “mãe dos peixenses”. Domingo à tarde sai numa bicicleta emprestada para um passeio, comprar gasolina para o fogareiro e ir ao banco. Fixei a Gopro (pequena câmera versátil que se adapta a várias situações e é a prova d'água) no capacete e levei para alguns testes. Se tivesse colocado uma melancia na cabeça chamaria menos atenção. Foi engraçado, topei com um grupo de adolescentes que riu demais da minha cara. Rimos juntos.

Por fim, agradeço. Por fim, agradeço à prefeitura e a população da cidade. Na saída fomos presenteados com uma bela bandeira do Divino, pelas mãos de Arnaldo, relembrando uma antiga tradição da fé e da navegação pelo rio.





30/05/2011 – Segunda-feira – Peixe - Ipueiras

Partimos pela manhã. Gabi ficou na cidade agilizando coisas da produção e esperando as camisas chegarem. Na hora de colocar o caiaque no rio, fui descendo com ele pela rampa. Os caiaques pesam cerca de 40 quilos sem carga. Duas pessoas levam tranquilamente, o comprimento torna o carregamento por vezes algo meio sem jeito. Quando ele está carregado, o melhor é carregar com quatro pessoas, cada uma pegando de um lado do cokpit. Fica maneiro como dizem por aqui. Então eu estava numa ponta e o Dedé na outra. Fui descendo a rampa e de repente ela acabou, fiquei com medo de soltar o caiaque e a parte que o Dedé carregava bater no cimento e quebrar. Resultado: entrei no rio junto com a hidronave. Diverti um pouco a equipe, mas fiquei neurado porque estava de pochete. Aí celulares, cheques, documentos, esse diário e outras quinquilharias molharam. Sorte que foi rápido. Lição: aproxima-se do rio, bota tudo num saco estanque!

O destino era a cidade de Ipueiras. Remamos com uma correnteza a favor de cerca de 5 km/h, o que nos dava uma velocidade muito boa. Navegamos uns 50 km e pernoitamos numa pequena praia beira rio. A noite o rio subiu, por influência da abertura das comportas da barragem. Um galão com cerca de 10 litros de gasolina e um dos remos do barco a motor sumiu. Não sei se foi roubado ou levado pelo rio. Nunca saberemos... De qualquer forma e sob todos os aspectos, redobramos a atenção com nosso equipamento e bagagem. Pois nesta mesma noite, os computadores e hds estavam a poucos metros de onde estava o galão...




31/05/2011 – Terça-feira – Peixe – Ipueiras

Segundo dia da remada para Ipueiras. Depois que o número de pessoas da equipe do rio aumento, aumentou também o tempo gasto para levantar acampamento. Até todos comerem, desmontarem barracas e redes, organizar o barco de apoio etc, vão quase 2 horas. Também não há tanta pressão, o rio corre no seu tempo e o lago não passa.

Ainda havia um restinho de correnteza no rio, um pouco menos veloz que na saída de Peixe, mas ainda assim facilitaria a navegação, imprimindo cerca de 2,5 a 3 km/h na velocidade da remada, ajudando a manter uma média de 10km/h. A água do Tocantins estava muito bonita, clara e num esverdeado, com visibilidade de cerca de 1,5 metros de profundidade. Volta e meia cardumes deslizavam ao lado do caiaque.

Ao navegar-se por uma parte represada do rio percebe-se a mudança de todo o ecossistema. Às margens do rio pudemos ver araras, garças brancas, uma bela e grande garça cinza, martins-pescadores e outros animais, que nos trechos alagados praticamente desaparecem. Observei que no sítio histórico Kalunga a quantidade de animais era bem maior e também tinha a nítida percepção de que a natureza está bem mais preservada do que a região abaixo do sítio no rio Paranã, ocupada por fazendeiros. O sistema de cultivo dos kalungas, de agricultura familiar lhes garante a subsistência e uma integração respeitosa com a natureza. Dava pra ver que a mata ciliar se estendia por dezenas de metros, contrastando com as fazendas beira rio, onde algumas vezes apenas uma rala faixa de 2 metros separa o rio do pasto. Me lembro de uma camisa que meu irmão Marne arrumou no Chile e que em resumo dizia que depois que o homem destruísse tudo iria entender que não se pode comer dinheiro.

Sigo meu destino para Belém... Para todas as vezes que o coração amiudava-se e doía, havia a poesia como alento. Além daquela lista de coisas pra se fazer que eu tenho no meu caderno vermelho, uma lista que possui vários remédios anti tédio. Escrevo mais algumas linhas e está tudo bem. A poesia continua a elixir.

Chegamos em Ipueiras com a impossibilidade do apoio formal da prefeitura. O que é compreensível, pois uma cidade pequena pode ter todas as despesas de seu orçamento já acertadas e um apoio, que apesar de não ser de um valor alto, relativo à hospedagem e alimentação da equipe por um par de dias, pode pesar no orçamento. Mas como é sempre bom contar com o acaso, a dona do supermercado, ao ter com a Gabi e o Dedé, quando eles foram ao estabelecimento comprar alimentos para nosso jantar, ligou para o Roberval, que é dono do hotel e chefe de gabinete da prefeitura de Porto Nacional, se sensibilizou com o projeto e articulou com a prefeitura de Ipueiras o apoio para nós. Então nos acomodamos na Praia da Amizade, cujo zelador era bastante atencioso e simpático, o senhor Zequinha, nos auxiliou no desembarque das canoas. No fim da tarde subi para a parte de cima da praia e fui escrever meu diário, ao som das músicas que minha namorada, esposa e tudo mais que eu poderia querer da pessoa que vai ficar comigo o resto da vida, selecionou para eu levar na viagem. Estava ótimo. O sol do fim da tarde e as lembranças boas que cada uma das músicas trazia, de algum dia de nossas vidas juntos.




01/06/2011 – Quarta-feira – Ipueiras




O dia foi para gravar depoimentos na cidade. Falamos com dona Romana, a pessoa mais velha com quem eu já travei prosa nessa vida: 107 anos! Incrível, tirando um pouco de surdez, ela estava inteirona e aparentava ser uma jovem de menos de 80. Gostou das tatuagens da Gabi e disse que ela tinha chita nas costas. Adorei a comparação. Falamos também com o vereador Melquíades, que dentre outras coisas, disse ter ouvido relatos de que os kalungas que buscavam sal em Belém, costumavam pousar em Ipueiras e trocar serviços por alimentos, inclusive disse haver vestígios de construções de fornos típicos dos kalungas na região. Não sei porque não fomos filmar isso. Também não é necessário filmar tudo. Essa fome de devorar o mundo com a câmera... O depoimento dele vira a imagem.


02/06/2011 – Quinta-feira – Ipueiras – Brejinho




A remada de 30 km foi bem tranquila. Houve troca dos nossos amigos do Corpo de Bombeiros. Saíram sgt. Lourenço, sd. Ronaldo e sd. Silva Neto e entraram o aspirante a oficial Danúbio, sd. Hevandro e sd. Farias. Todos gente fina e super solícitos. Gabi desceu mais cedo para Brejinho no carro dos bombs levando junto boa parte da nossa bagagem e os eletrônicos (computadores e hd's). foi bom porque da uma dó esse monte de equipamento quarando no sol todo dia, o dia inteiro no barco a motor. Dei uma camiseta e uma gorjeta, ou uma solução, como ouvi dizer no kalunga, para seu Zequinha, que ficou bem feliz. Não sei se ele aparece em alguma foto...

A remada foi tranquila. E apesar de não haver praticamente mais correnteza, os caiaques oceânicos estão em seu habitat natural. Foram projetados para mares, lagos e rios sem pedras. Temos feito média de 8 km/h no início do dia quando o sol está mais baixo e estamos descansados. À tarde o calor aumenta consideravelmente e isso pesa no remo. Principalmente quando estamos no lago e o sol a partir das 15h30 reflete no espelho d'água. Aí não adianta chapéu, pois o sol vem de baixo...

A chegada em Brejinho de Nazaré foi tranquila. Fomos direto para o almoço, depois de descarregar os barcos e os “caiates”, como diz seu Carlitos, nosso anjo da guarda da Naturatins, que nos acompanha do trecho de Paranã até Palmas, cumprindo conosco, com bom humor, amizade e solicitude, ¼ do trajeto.




03/06/2011 – Sexta-feira – Brejinho




Fomos muito recebidos pelo poder público municipal, que através da prefeita e secretários, juntamente com meu amigo André Capoeira, não mediram esforços para tornar nossa passagem cinematográfica pela cidade o mais proveitosa possível. Gravamos bastante, com destaque para André Capoeira, que desenhou um importante mapa da formação dos quilombos da região, bem como expôs sua teoria sobre o surgimento de Brejinho de Nazaré, que confronta a versão tida como oficial e que nos foi apresentada pelo professor Jacob.







4 e 5/06/2011 – Brejinho


Dias de hotel, trabalho, edição... Saudade de casa e do rio. Montei com o Ton algumas pílulas, Baxter finalizou o design do novo site, o povo atualizando seus diários, a cerveja na pracinha à noite e aproveitar para por a roupa suja em dia, que já não havia mais limpa.

A cidade é bem bonita, com árvores paradoxalmente podadas, que causam um efeito estético interessante, mas praticamente não dão sombra. Lembram a praça Raul Soares de Belo Horizonte, cuja poda das árvores recebe crítica de ter influencia positivista, para companhar a simetria das ruas e avenidas que ali se cruzam. O belo para uns ou o funcional para todos? Ficaria com elas sem poda mesmo e me descansaria do sol do meio dia dia sob suas frondosas copas.


6, 7, 8 e 9/06/2011 – Porto Nacional




É a quinta maior cidade do Tocantins e a maior que passamos até agora. Sair do rio e começar a a caminhar pela cidade causa um choque, um estranhamento e me dá saudade dos acampamentos beira-rio.

Aqui, tanto pelo tamanho da cidade, como pela ausência de um cicerone, a produção das gravações ficou meio lenta, conseguimos gravar somente depois de dois dias na cidade. Mas está fluindo e creio ter mapeado quantidade suficiente de personagens. Inclusive começa a nos acompanhar um fictício, metáfora da busca da memória e das histórias, enquanto sujeito que percorre trajetos históricos e viaja no tempo. Bem como metáfora da própria memória, que às vezes está forte como a luz do meio dia ou quase se perde nas sombras do esquecimento. Ou outra imagem que você quiser criar. Amanhã gravamos a tomada de helicóptero que imaginei e propus para o secretário de cultura de Palmas em 2010 e será viabilizada com o apoio do governador do Estado e da secretaria de cultura, que nos cederá 2 horas de vôo. A ideia é que o helicóptero decole da praça dos Girassóis, que é a segunda maior praça do mundo, e a medida que ganha altitude praça vai ocupando a tela e num plano sequencia, voa até o rio Tocantins, onde eu, Emerson, Dedé e Flor estaremos remando nossos caiaques.

Hoje pela manhã gravamos com o multifacetado e atuante socialmente dr. Eduardo Manzano e logo mais gravaremos com Everton dos Andes (www.evertondosandes.palcomp3.com.br), filho de Argeniro, que tocava na banda de Jazz de Porto em 1940 e era composta por músicos negros. Vou tomar um banho e me dirigir para o bar flutuante, onde combinamos de gravar e tomar uma cerveja. Estou com um bom pressentimento para esse encontro. Simbora!


10/06/2011 – Sexta-feira – Porto Nacional




Acordamos cedo e fomos para Palmas. O compromisso era a tomada aérea da gente remando. Foi massa e correu tudo como planejado. Um pouco tenso por causa do tempo curto e de todos os detalhes que deveriam ser observados. Ton e Baxter subiram no helicóptero para filmar e fotografar... Eu, Dedé, Flor e Emerson encarnamos nós mesmos como personagens nessa remada produzida pro filme. Bom, só quem ler esse diário ou conversar com um de nós vai saber disso, pro resto é cinema e nossa chegada em Palmas vista de cima.

Voltei para Porto, foi a conta de almoçar e partir para a entrevista da tarde com o Edivaldo, do jornal Paralelo 13. Sugeriu quatro locações: a igreja, dois casarões e o rio. Nos casarões contou a história do dr. Francisco Ayres da Silva e do cel. Dirico. Ambos eram chefes políticos de Porto e alternavam o poder. Eram inimigos declarados, não se falavam, suas casas eram separadas pela praça, uma em frente a outra e detalhe: dr. Francisco era o médico do cel. Dirico. Ia em sua casa, media a pressão, prescrevia etc. O processo todo trocando o mínimo de palavras. Terminava e atravessa a praça para voltar pra casa.

A noite estava bem cansado e fiquei no quarto do hotel.







11/06/2011 – Sábado - Porto Nacional




Pela manhã, enfim gravamos com o Everton dos Andes e como eu havia imaginado, foi muito bom. Uma das melhores entrevistas até agora. Só incrementou a complexidade da montagem desse filme, que até agora já está com 30 horas de material bruto, que ocupam mais de um terabyte nos hds. E coisa boa para montar uns 3 longas. E ainda estamos no início, cumprimos hoje ¼ da viagem – 500km.

Depois da entrevista retornamos para o hotel e terminamos de empacotar a bagulhada toda. É tralha... além das cinco câmeras, três tripés, uns cinco notebooks, tem toda a bagagem pessoal de sete pessoas que vão ficar fora de casa por 4 meses!

Chegamos no rio (na verdade na represa) por volta das 13h30 e começamos a remar tipo 14hs, se não me engano. Remamos até as 18hs e acampamos na beira do lago. Aladir Murta nos deu o prazer de sua companhia nesses 25 km. Ao chegarmos no acampamento, se despediu de nós e caminhou 5 km até a estrada, de onde pediria que seu filho que mora em Palmas o buscasse. Fica pra outra ocasião a participação dele em algum outro river movie meu. Aladir pode ser buscado no Google e aparece como um grande navegador, que tem registrados, se não me engano, cerca de 49 mil km pelos rios do Brasil. Há cerca de dez anos atrás iniciou essa nova vida, que consiste em remar uma canoa, sozinho, pelos quatro cantos do Brasil. Meu pai leu algo sobre num jornal e comentou comigo na época em que eu estava preparando a viagem da Rota do Sal. Fiz umas pesquisas na net e achei um blog de um neto dele. Me correspondi com ele e recebi um telefone celular do Aladir, com código de área do Amazonas. Alguns meses depois nos falamos por telefone. Expliquei o projeto. Ele se empolgou tanto, que antes que eu o convidasse para fazer conosco um trecho da expedição, demonstrou interesse em participar da viagem inteira. Combinou de pegar um ônibus de Palmas para Belo Horizonte. Nos encontramos depois de quatro dias. Era o carnaval de 2011. Daí passou uns 10 dias se encontrando comigo, com Dedé e com o resto da equipe. Sua proposta inicial foi de acompanhar a expedição toda, como já havia feito a viagem pelo Tocantins umas duas ou três vezes, seria nosso guia. Ficou também de tentar conseguir um barco a motor para nos acompanhar. Esse era o ponto que quebrávamos a cabeça na época, pois sem um barco de apoio seria inviável fazer a expedição. Estava tudo perfeito. Barco arrumado, Murta seria nosso super guia, e além de tudo um interessante personagem para o filme. Mas o namoro durou pouco e Aladir teve que abandonar a expedição, alegando problemas de saúde. Passaram-se os meses, arrumamos os barcos, a expedição começou e eu ainda tinha a ideia de filmar com o Aladir. Assim de vez em quando ligava pra ele. Combinamos de nos falar quando estivesse próximo de Palmas. O que foi feito. Liguei pra ele de Peixe. Me disse estar no rio Guaporé e que iria tomar um ônibus para nos encontrar em Palmas. Ficou uns 4 dias na estrada, trocando de ônibus sei lá quantas vezes. Aí me ligava da estrada anunciando sua posição nesse Brasilzão sem porteira. Do nada já estava perto de Porto e alterou o ponto de encontro pra essa cidade. Então na manhã de nossa partida pra Palmas ele apareceu! Teve um fato que foi desencadeador da sua partida precipitada. Quando nos aproximávamos do ponto do acampamento intermediário entre Porto e Palmas, haviam muitas árvores mortas e submersas na barragem. Estava escurecendo. Eu e Flor batemos em umas duas. E o barco a motor em que Aladir era transportado também deu uma topada. Nada de grave. Apenas um susto. Mas foi o estopim da discussão de Aladir com nosso amigo pilotava a voadeira. Aladir tentou convencer a nós da equipe que o piloto era ruim e tinha colocado a vida de todos em risco etc e tal. Inclusive elevou o tom de voz com ele. Avaliamos a situação e percebemos que havia um certo exagero em suas reclamações. Tentei acalmá-lo, dizendo que qualquer um poderia bater num galho naquela hora do crepúsculo, inclusive que eu havia batido também. Mas não adiantou e ele anunciou sua partida. E também anunciou que não gravaria mais com a gente. Só posso lamentar o pavio curto do meu amigo. Espero que tenha chegado bem em casa. Qualquer dia desses a gente se fala novamente.

Fizemos uma panela gigante de macarrão e fomos para as redes e barracas, pois no dia seguinte chegaríamos em Palmas para umas entrevistas às 11 horas e tínhamos que acordar cedo.







12/06/2011 – Domingo – Porto Nacional – Palmas




Acordamos cedo e demos uns gritos bem altos, para saudar a alvorada, descarregar ou carregar algumas energias e para dar bom dia aos nossos vizinhos de acampamento farofeiros que chegaram de madrugada com o som do carro no talo. Bom que eles pularam da barraca cedo e foram pescar com a cara amassada de ressaca.

Remamos bem. Pegamos um banzeiro louco. Tivemos que remar mais pela beira da represa, pois se o vento arrochasse, tínhamos que retirar as embarcações da água e esperar. Tivemos uma tomada bem bonita chegando em Palmas do aeroporto. Ele fica bem próximo da represa e conseguimos filmar um avião decolando, que se tratando deste aeroporto é algo bem raro, pois ele é pouco movimentando. Final de 2010 estive em Palmas de avião e me lembro que haviam duas partidas e duas chegadas por dia. Ton estava com a câmera no barco a motor.

Dia dos namorados sem namorada.

Consegui fixar a Gopro na pá do remo. Ermo. Orem. Mero. É uma perspectiva que gira, faz o mundo todo girar, o eixo do mundo é o remo. O movimento de uma pá que movimenta o rio. O resto fica parado. Só o olho do remo importa e ele me olha giramundo.

Tivemos bons mergulhos. É bom demais resfriar o corpo quente do sol e do exercício no meio de tanta água. A técnica de retorno para o caiaque já está apurada e é feita diretamente no cokpit, em vez de ser pela frente do caiaque. Ainda não testei subir pelo cokpit com o caiaque vazio, todas as vezes havia alguém no outro banco, que sempre leva um susto, pois a manobra faz o bichinho balançar um bocado. Balança mas não vira e seguimos nossa aventura.

Pegamos um sol via espelho d'água cegante. A compra do óculos escuro foi bem feita. Tenho um rayban aviador que uso bastante em BH, mas ele não ia aguentar o tranco da viagem pois é de metal. Ia enferrujar, amassar etc. E eu também não aguentar seu peso na minha napa, que sempre fica marcada. O modelo ideal era um de plástico. Acabei pagando um pouco mais pelas lentes polarizadas, que cortam consideravelmente o reflexo do sol na água, proporcionando maior conforto e mais precisão na distinção dos obstáculos da navegação, como pedras e pontas de árvores mortas. Ia comprar um da Mormai para prestigiar a indústria nacional e porque eles são de ótima qualidade. Mas experimentei um Oakley e eles estão alguns passos na frente, nunca usei um óculos tão confortável, que você coloca e nem percebe seu peso. E que lentes... Acabo aumentando meu vício em óculos escuros. Que sempre gosto de pensar que eles podem mudar a cara de um dia. Só o design deste modelo, o Jawbone, que é um pouco escalafobético e chama a atenção demais, o que não é muito do meu feitio.

Chegando em Palmas passamos por várias praias, era um pouco cedo ainda e elas estavam vazias. Acho que também a temporada de praias ainda não começou. Numa delas eu passei uma tarde da primeira vez que estive em Palmas com Dedé produzindo a Rota. Não curti muito porque haviam duzentos carros com som no talo!

Havia a possibilidade da imprensa estar nos esperando na praia da Graciosa, mas não apareceu ninguém. Fomos direto pro hotel. Fomos para um bar que havia lá em frente. A maioria da equipe entrou na cerveja. Eu fui pro quarto do hotel editar uma pílula sobre o lixo no rio. Gostei do resultado. É uma contribuição pro projeto Limpa Brasil.







13/06/2011 – Segunda-feira – Palmas




Eu e Gabi saímos cedo do hotel para aproveitar o tempo em Palmas. Passamos na secretaria de Estado de Cultura, nos encontramos com a Joana Munduruku, que é a responsável por assuntos indígenas na secretaria. Batemos um papo informal, de onde surgiu uma informação que ainda não dispunha: em Belém há outro porto além do que fica perto do Ver-o-peso. O porto do Sal. Não preciso falar mais nada... Vamos aportar nossos barcos lá. Nos encontramos com o Geraldo, chefe de gabinete da secretária Kátia Rocha e marcamos uma visita para a tarde. A equipe foi completa e uniformizada. Levei o remo para dar o gosto simbólico da aventura, pois eles tinham ficado na expectativa de nos receberem na beira do rio, mas não conseguimos nos comunicar para avisar o horário da chegada. Aproveitei o embalo diplomático e visitei junto com meu hermano Ton a sede da Naturatins, para agradecer pessoalmente o apoio concedido ao projeto. Estive com Alexandre e Rômulo, respectivamente presidente e vice da instituição. Fechamos o dia com uma pizza ultra gigante e fui dormir cedo para remar no dia seguinte. Nossa missão em Palmas estava cumprida. Meu objetivo principal na cidade era conversar com algum morador da ilha Canela, que era localizada em frente Palmas e foi evacuada por ocasião do enchimento da represa e afogada. D. Lurdes, xará da minha vó, foi quem nos contou com detalhes a história da ilha. Ótima conversa, me emocionei diversas vezes. Dentre outras coisas nos contou que haviam tão poucos recursos na ilha, que a escola que ela fundou era debaixo de um pé de manga e os alunos escreviam com um lápis feito de carvão fixado num talo de buriti e numa folha de capa rosa como papel! Isso que é criatividade. Nos contou também da chegada de um grupo de cerca de 300 pessoas para passar o fim de semana na ilha. O objetivo era uma reunião de figurões, incluindo o governador do recém constituído estado do Tocantins, para definir o local da nova capital.




14/06/2011 – Terça-feira – Palmas




Acordamos cedo para partir rumo a Lajeado, seguindo pela represa. Ficamos hospedados no hotel Center Palmas, que coincidentemente era do nosso amigo Evaristo, dono do hotel Arco Íris, onde eu e Dedé nos hospedamos nas viagens à cidade. A rede Globo e a RBS (TV estatal) nos aguardavam para uma entrevista, assim como a assessora de imprensa da Naturatins. Foi bacana, gravaram com quase todos da equipe. Como sempre na velocidade em que as matérias são produzidas informações saem meio distorcidas. Meu crédito sai como Emerson Azeredo e vice-versa e no final da matéria, o repórter e apresentador da Globo do jornal local disse “e o melhor de tudo é que o filme vai ser distribuído de graça!”. Ficou até engraçado, pois disse a ele que vamos distribuir cópias gratuitas nas escolas públicas e ele ampliou a oferta para todos os espectadores da emissora. Se vierem me pedir filme de graça vou passar os contatos do jornalista.

Com todo o esquema midiático na hora da partida, atrasamos um bocado. Fomos sair onze e meia da manhã. Parte da equipe queria almoçar. O que acabou gerando uma pequena discussão, mas acabamos saindo sem almoço mesmo, senão demoraríamos muito mais.

Começamos a remar, eu havia combinado com o pessoal de parar na hora do jornal pra gente assistir do meio do lago. Liguei um pouco antes a TV do celular e estava pra começar os Simpsons! Como sou fã daqueles bichos amarelos, coloquei o telefone no chão do cokpit, onde fica protegido do sol e dos respingos, coloquei o fone e fiquei remando, olhando pra baixo e rachando de rir. Logo depois veio o jornal e encostamos os caiaques para assistir a matéria. Pena que esqueci de gravar, pra postar no clipping do site. Quase não uso a TV do celular. Outro dia estava em São Paulo gravando um documentário na cinemateca e ia ter jogo da seleção, fiquei procurando uma televisão pra assistir e sem sucesso não vi o jogo, sequer me lembrei que tinha uma no bolso...

Nosso amigo Carlito da Naturatins, depois de uns vinte dias conosco, foi rendido por um colega, também chamado Carlito, para voltar pra casa e descansar do período de trabalho em campo.

Demos bons mergulhos no lago. Por volta das 16h30 encontramos uma bela praia e aportamos. Seu Zé, que tomava conta da casa, nos autorizou a dormir por lá. Foi um acampamento high tech, pois tínhamos luz elétrica, mesa e na casa próxima um luxo raro nos dias de remada: água gelada. Eu e Ton pegamos o caiaque no fim da tarde para pescar no meio do lago, mas não pegamos nada. Os peixes nem bateram. Tentei várias vezes ligar pra Dani, mas o sinal estava muito fraco e intermitente. Tive uma boa noite de sono na rede. Apesar de ter acordado algumas vezes por causa de um forte vento, que inciou por volta das 3 am.







15/06/2011 – Quarta-feira – Palmas – Lajeado




A ventania da noite me fez acordar lembrando de um sonho que tive na Serra do Cipó uns 10 anos atrás. Estava no auge da empolgação com a escalada, indo pra pedra quase todo final de semana e lendo o livro “No ar rarefeito”, que descrevia uma expedição trágica ao Everest. Uma noite no camping da Zuma ventou bastante, balançando e quase pondo abaixo minha barraca. Sonhei que estava na base do Everest e uma nevasca batia do lado de fora. Foi ultra real e acordei cheio de adrenalina nas veias. A mesma “adrenalinda” que persigo nessas andanças pelo rio...

Amanheceu o dia, aos poucos os membros da equipe foram acordando e começando o processo de tomar café da manhã e levantar acampamento. Tudo no seu tempo, pois com onze pessoas não dá pra estressar e querer sair muito rápido. Gravamos com o seu Zé. Um ex-ribeirinho. Plantava na vazante. Agora trabalha como caseiro, pois plantar ficou difícil, na medida em que a cultura ribeirinha semeava e colhia de acordo com as cheias do rio e com a represa, esse movimento deixou de existir. As empresas que constroem as hidrelétricas supostamente deveriam como compensação auxiliar os agricultores na substituição das técnicas de plantio. Mas o que temos ouvido por parte dos moradores da bacia atingidos pelas barragens são apenas lamentações e indignação pelo abandono sofrido. Promessas e mais promessas não cumpridas e situações absurdas, como na barragem do Lajeado, onde foi prometida a instalação de uma sirene que alertasse aos moradores da abertura das comportas, porém tal sirene jamais foi ouvida, nunca soou e diversos pescadores perderam a vida sendo pegos de surpresa pelo aumento súbito do volume do rio. Tsunamis da ignorância e da prepotência humana.

Fomos informados que o vento pararia por volta do meio dia. Então aproveitei o tempo para gravar meu depoimento para o programa Revista do Cinema Brasileiro, da TV Brasil, cuja edição que participaremos é um especial sobre road movies e a Rota do Sal entre neste rol, como um river movie. Filme de rio. Teve uma parte do depoimento muito legal, enquanto eu falava, um saco plástico veio voando em minha direção. Consegui apanhá-lo no ar! Aí aproveitei a deixa do lixo voador para falar que andava catando umas garrafas pets e outras coisas pelo rio. Espero que eles usem essa parte na edição. Por volta do meio dia, apesar do banzeiro, tivemos que partir. Deixei o Ton ir remando nesse dia, eram uns 25km até o ponto de retirada dos barcos, antes da represa. Chegamos ao bar do Caboclo, que deixou que pernoitássemos na beira do rio. Nos deliciamos com líquidos gelados, fizemos um rango e dormi bem demais debaixo de umas árvores, sob a luz da lua, a menos de 10 metros da margem do rio, quer dizer da barragem. No bar, que fica na beira da estrada que liga Lajeado a Palmas, cerca de 250 metros da água, haviam alguns vizinhos tomando cerveja. Como eu ia remar no dia seguinte me abstive de beber algo alcoólico. Sondei sobre o Funil... Temido trecho existente bem em frente à cidade do Lajeado. Várias histórias de acidentes, embarcações naufragando, mortes e corpos desaparecidos... Sepultados nas profundezas, onde segundo os locais, habitam os últimos grandes peixes desta região do rio Tocantins. As opiniões se confrontavam. A maioria das pessoas dizia que não deveríamos passar pelo Funil, parte menor dizia que dava pra passar. O local é composto por dois paredões de pedra, o da margem direita mais alto, com cinco metros de altura, o da esquerda mais baixo, uns dois metros. O rio estreita, a correnteza fica mais veloz e se formam rebojos. Dependendo da quantidade de água que verte da barragem, pode-se abrir um grande rebojo em forma de olho, e se o bico da canoa for ao seu encontro, ela emborca e faz água, sendo puxada para o fundo do rio. Para sempre. E seus condutores e passageiros dificilmente escapam com vida. Minha cabeça estava divida. Ao mesmo tempo que queria experimentar os desafios da navegação, tinha saído de BH sem a menor intenção de arriscar minha vida nessa viagem. Cheio de planos, meus amigos, minha mulher, os filhos que ainda vão nascer... Ainda estou novo demais para morrer. Sentia saudade dos trechos mais punks da expedição, que foram no rio Paranã e já haviam ficado bem para traz... Eu e Dedé combinamos de ir com a lancha dos bombeiros e um caiaque. Subiríamos um pouco o rio para fazer umas imagens da hidrelétrica e depois, dependendo do que víssemos, colocaríamos o caiaque na lancha e não remaríamos no Funil. Flor e Emerson já haviam decidido ir de carro para Miracema e pular o trecho.







16/06/2011 – Quinta-feira – Palmas - Lajeado




Acordei cedo, fiquei olhando o lago da minha rede... e tive uma ideia. Pedir para o Caboclo me levar de carro até o Funil, assim poderia ver o como realmente era. Desmistificar o lugar ou realmente aceitar sua força e não desafiá-lo. Falei com Caboclo, que topou me levar lá. Chamei Dedé e saímos. O resto do povo ainda não tinha levantado. Chegamos ao Funil meia hora depois, uma senhora que morava lá nos guiou. Ex-ribeirinha, gravou um depoimento contando das façanhas da hidrelétrica, contou da sirene fantasma que ninguém escuta e que os responsáveis pela usina juram soar todos os dias antes da abertura das comportas, falou da invasão das capivaras em suas roças atualmente. Por fim nos disse que dava pra passar pelo Funil sim, que quando o nível do rio está baixo, ele não fica perigoso... Chegamos ao famoso trecho... Pela margem direita, da parte mais alta do cânion pude observar o bicho de sete cabeças e dar meu veredito. Era possível colocar nossos caiaques nele sem arriscar a vida. Bom, pelo menos o risco aparente não era muito grande. A adrenalina estava na corrente sanguínea. Voltamos pro Caboclo depois de passar na cidade e comprar gêneros pro café da manhã. Tomamos um pito do resto da equipe por termos saído sem avisar. Expliquei para o Emerson e a Flor como era o local, que já havíamos passado por trechos piores no Paranã, mas estavam decididos. Eu e Dedé iríamos descer. Ton e Baxter foram na lancha dos bombeiros. Gabi, Emerson, Flor e seu Carlitos foram de carro para Miracema. Falei com o pessoal todo na hora de despedir, que se por acaso eu empacotasse nessa, que meu desejo era que eles continuassem a expedição e finalizassem o filme, inclusive usando a imagem do meu caiaque naufragando! Flor não gostou da brincadeira e me passou um pito. Chegamos na beira do rio, onde a lancha vermelha já nos esperava. Havia uma tensão no ar. Combinamos o trajeto a ser feito, eu fui no leme e Dedé na proa. Eu havia recheado o compartimento dianteiro de carga com garrafas pets, caso o olho do Funil tentasse me sugar para suas profundezas. Estava com vontade de amarrar um galão ou uma pet nuns 15 metros de corda e no meu colete, caso afundasse, os bombeiros poderiam me localizar mais facilmente, mas não levei essa ideia adiante. Apertei meu colete ao máximo e adentramos o caiate, como diz seu Carlito. Passamos pelo Funil e todos seus rebojos, numa velocidade de 18.4 km/h, que foi o recorde da expedição até o momento. Depois do Funilzão, o Funilzinho e pra finalizar, uma pequena batedeira, que quase mandou uma jorro d'água nos nossos cokpits. Um grande berro para comemorar e descarregar a adrenalina. O resto da remada foi bem bonita, de volta ao rio, correnteza, alguns botos vieram nos saudar... Estávamos em território indígena da reserva Xerente. Vimos duas crianças saindo de canoa. Deviam ter 13 e 6 anos. O menorzinho estava pelado. Me aproximei deles com o caiaque para bater um papo. Em duas horas estávamos em Miracema.

Chegando na cidade fomos reconhecidos por um senhor que havia visto a matéria da expedição no jornal televisivo. Nos convidou para tomar alguma coisa. Aceitamos um refrigerante, trouxe também uma porção de peixe frito. Nos sentimos lisonjeados com a recepção. Na mesa do bar estava o presidente da câmara dos vereadores. Fizeram várias perguntas, tiraram fotos conosco e nos ajudaram a conseguir uma caminhonete para tirar os barcos do rio.

Enfim fomos para hotel e descansei deste dia bacana. A noite recebemos a visita da professora Maria Luiza e do professor Danilo, que nos ajudaram a mapear alguns nomes e também nos convidaram a uma visita na escola, que fica do outro lado do rio em Tocantínia.







17/06/2011 – Sexta-feira – Miracema




Trabalho de escritório incólume. Metido num quarto de hotel. Mil parafernálias eletrônicas ligadas na tomada, baterias carregando etc coisa e tal. Um cabo usb ligado na minha nuca.

Dia pra descobrir os personagens da cidade. A tarde eu, Flor e Ton fomos na escola municipal de Tocantínia. Diversidade reunida, na sala haviam índios, brancos e negros. Passei as pílulas da Rota, falei sobre o projeto, da cultura brasileira... Eles curtiram os vídeos. Um fenômeno muito interessante se repete nessas ocasiões. As pessoas assistem aos vídeos e começam a dizer que alguém que aparece se parece com um parente ou vizinho. “Olha o tio do fulano!” e por aí vai. É o realismo de um cinema de raiz, que vai onde a TV não chega, onde a globo filmes passa longe, onde a imprensa nem sabe que existe. Brasil e brasileiros.

A professora observou e comentou comigo que eu tinha usado a palavra escravo para me referir os kalungas que fugiram do cativeiro. Me lembrou que escravizado era o termo correto e assim a descolonização semântica ajuda a todos a perceberem que a dominação chega por diversos meio. Escravizado remete imediatamente a um ser humano que foi subjugado e submetido a escravidão. A palavra escravo esconde o início do processo e dá um tom perpétuo a uma condição desumana e extraordinária. Passa despercebidamente a ideia ou simplesmente apaga a lembrança de que esses negros que vieram sem querer para o Brasil eram livres em seu território natal. Inclusive vieram nos navios negreiros reis e rainhas... Todos eles escravizados.

Agora começam a sequência das cidades irmãs, separadas pelo rio. Aqui de um lado Miracema do Tocantins, antiga Miracema do Norte, terra da mariposa apaixonada de Guadalupe. Capital provisória do estado por um ano e meio, comércio e serviços relativamente desenvolvidos. Do outro lado do rio Tocantínia. Mais antiga e menor, conserva um ar mais interiorano, casinhas baixas, a rua que vem do rio chega na praça da cidade, cuja sombra das árvores abriga do calor muitos índios, que vão à cidade se abastecer de gêneros alimentícios, comercializar produtos, resolver questões burocráticas junto à Funai. Vários deles, além da casa na aldeia, mantém uma na cidade. O tráfego entre as duas cidades é feito em voadeiras, onde se paga dois reais durante o dia, três à noite e quatro de madrugada. Os barqueiros trabalham num esquema de plantão, garantindo que a qualquer momento os cidadãos possam ir de uma cidade à outra. Há também a balsa que atravessa carros à doze reais, motos à seis e pedestres a um.







18/06/2011 – Sábado – Miracema




Fomos na casa do seu Moisés, pai da professora Maria Luiza. Contou uns causos pra gente. Morou muito tempo na cidade, mas ele e a esposa não estavam aguentando mais o barulho dos carros e do som na porta de casa, que ficava em frente a uma praça. Imagine Belo Horizonte então... “De que me adianta viver na cidade”. Compraram um chácara e se picaram pra lá. Tão criando abelhas, umas vaquinhas... falaram que vão durar mais lá no mato que na cidade. Afoxé.

De tarde fomos voltamos pra cidade. Estava com ideia de gravar com a mariposa apaixonada de Guadalupe, cuja carta de amor para Arlindo Orlando ficou nacionalmente famosa na música da Blitz, que na década de oitenta tocava a torto e a direito... “Estou a dois passos do Paraíso...”. Fiquei sabendo que ela realmente existia, estava viva e morava na cidade. Perguntei para nossa cicerone se sabia de seu paradeiro. Perguntamos para uma ou duas pessoas na rua e acabamos por chegar em sua casa. A porta estava aberta. Lá de dentro uma senhora nos olhou e agora imagino que ela tenha tido uma vertigem que já se repetira várias vezes antes. O mal estar de ver estranhos a sua porta querendo revolver as poeiras de um tempo remoto. Fizemos sinal e ela se aproximou. Foi apresentada ao assunto de nossa expedição cinematográfica. Indagada se era ela a personagem da música disse que não, que todos cismavam que era ela por que ela namorou Arlindo Orlando, mas não havia escrito a carta. Disse que não queria participar do filme, não queria gravar depoimento algum. Falou também que sabia dos direitos dela e que se tivesse como provar que a carta era dela, processaria a banda. Ficou no ar a contradição. Me desculpei pelo incômodo e nos retiramos. Na música ficou até bonita a carta, mas a repercussão que tamanha exposição lhe causou não foi positiva. Se tornou motivo de comentários na pequena e pacata cidade de Miracema do Norte. E volta e meia algum pelinha vem bater a sua porta, seja da imprensa ou algum diretor de filme besta. Mariposa ou não, desejo que esteja em paz com seu passado e feliz com seu presente. Seguimos nossa viagem

Fui apelidado de dublê pela turma de bombeiro que nos acompanhava no momento. Cabo Soares, soldados Robson e Jessimar. Já era a terceira. Com todas elas o relacionamento foi tranquilo e com brincadeiras mútuas. Geralmente os bombeiros chegam bem animados, com seus equipamentos de pesca, paçoca (carne mistura com farinha), mas como a missão é longa, depois de alguns dias, pelo menos um ou dois do trio começam a ficam com saudade de casa e sentir algum tipo de tédio...

Me lembrei que dias atrás na cidadezinha de Ipueiras, ao subir do rio para a centro, com minha mochila de equipamentos, um homem saiu de sua casa as pressas, me chamando. Parei para ver o que era. Perguntou o que eu tinha na mochila. Até eu processar sua pergunta fiquei sem responder. Ele viu que eu demorava pra dizer algo e perguntou: “É dvd é? Que você está vendendo?”. Falei que não. “Ele ficou meio sem graça e pediu desculpa. Devia estar na fissura de assistir um filme novo. Disse a ele que fazia filmes... Em outras cidades confundiram alguns da equipe com hippies e tatuadores...





19/06/2011 – Domingo – Miracema




Estava muito quente. Saí pela manhã com Gabi e Emerson para um passeio pela cidade. Ton dormia. Dedé, Gustavo e Flor tinham ido para uma aldeia Xerente. Tinha acabado de tomar café da manhã. Chegamos na feirinha da cidade, já estava no final, deu pra fazer algumas imagens. Havia alguns dias que eu queria tomar um caldo de cana. Coisas de fim de feira: o gelo tinha acabado. Acabei tomando sem gelo mesmo. Enquanto Emerson e Gabi tomavam uma cerveja gelada eu começa a sentir meu estômago se embrulhando pra presente. Caiu mal demais o caldo. Vixe. Fomos entrevistar um senhor Árias e eu mal consegui me concentrar nas perguntas. Depois me encontrei com o Ton e ele também estava passando mal. Então deduzimos que fora algo que comemos no jantar. Nesse dia não conseguimos almoçar. Jantamos uma tigela de aça. Resolvi mudar minha estratégia para o diário. Escrevo agora palavras-chaves e frases que depois quando tenho a chance de me sentar no computador, desenrolo o texto. Senão tenho que ficar digitando tudo que está escrito no caderninho azul e fico com a sensação de estar fazendo o trabalho duas vezes. Vamos ver se funciona.





20/06/2011 – Segunda – Miracema




Eu e Gabi partimos para Tocantínia, a cidade em frente. Cidades irmãs ao longo do trecho. Separadas ou unidas pelo rio. Que se atravessa de nado, voadeira, balsa, colchão inflável... Pra um cara da cidade grande, cujo o rio de sua infância é uma tristeza chamada Arrudas, esse Tocantins é um delírio esverdeado, numa temperatura perfeita pra deixar as próximas da vida mais felizes. Um rio é vida, espero que o rio Cipó, que é meu rio adotivo dos últimos anos, continue limpo para que meus filhos e netos se banhem nele e tenham a mesma alegria que eu e minha mulher temos lá. Não rolou nenhuma entrevista em Tocantínia, o povo que tínhamos indicação havia viajado. Faz parte do river movie. Ninguém é indispensável, ao mesmo tempo que alguém que você acaba de conhecer é o personagem principal do filme pelos próximos instantes. Conheci o Samuel. O índio que nos acompanhará nos próximos dias pelas aldeias de Porteira, Bela Vista e Traíra.

Me concentrei na parte da tarde em finalizar os dvds que contem imagens para a TV Brasil. Fiz uma boa seleção. Mandei fechar as contas do hotel na véspera para agilizar o processo da partida no dia seguinte pela manhã.







21/06/2011 – Terça – Miracema - Porteira


A remada foi bem curta. Enfrentei antes uma fila no correio e despachei os dvds. Logo chegamos na aldeia. Se não me falha a memória, foram uns 13 quilômetros. Seu Samuel subiu comigo para nos apresentar e ver se podíamos passar o dia e a noite lá. Chegamos numa casa que possuía um banco de madeira na sombra e três pessoas estavam sentadas. Um índio estava com uma cartucheira pendurada nas costas e um facão preso na guidão da bicicleta. Disse pra eu não me assustar, que haviam matado um irmão recentemente e se ele avistasse o criminoso seria um tiro só no espinhaço, que ele não é de errar. Falei pra ele não se assustar também que minha equipe era grande e que a gente tinha intenção de passar um tempinho ali. Ele disse que estava tranquilo e ficamos conversando. Nisso o grupo engatou uma conversa em Gê. Eu e Gabi pescávamos apenas algumas palavras em português que os índios falavam: voadeira, nomes de cidade, numerais... o resto era indecifrável. Mais tarde me encontrei novamente com o índio da Espingarda, seu nome era Sonze. Ele me explicou que Sonze significa aquele que tem mão boa para plantar. Estava com um borduno muito bonito, que é uma espécie de tacape de madeira, utilizado como arma. Me contou que de certa feita fora agredido por um outro morador da aldeia que estava bêbado. No dia seguinte topou com seu agressor e lhe deu uma forte lapada na perna e que este caíra imediatamente. Foi sua vingança.






22/06/2011 – Quarta-feira – Porteira – Bela Vista



Antes da partida para a próxima aldeia, passamos novamente na casa do seu Severo, ancião da aldeia, para nos despedir e gravar o seu discurso, como ficara combinado de véspera. O discurso é feito quando membros de clãs diferentes se encontram. É uma espécie de troca de informações... Compartilhei com ele sua dor ancestral de terem sido assolados pelos portugueses em 1500.



Deixei Gabi remar no meu lugar para ela sentir o gostinho da jornada no caiaque. Foi junto com Flor e prosearam o trecho inteiro. Dia que transcorre sem novidades. Chegamos na aldeia Bela Vista e nos alojamos debaixo de um telhado que havia em frente à escola, provavelmente um local para atividades ao ar livre, construção que também havia na outra aldeia. A noite chegaram alguns índios que haviam exagerado no alcahol e quiseram nos afrontar. Suas esposas os tocaram pra dentro de casa, de onde ficaram lançando ameaças. Se sentiram invadidos, vendo aquelas barracas e redes montadas... No outro dia de manhã vieram pedir desculpas. A noite foi ligeiramente tensa, mas no fundo dava pra perceber que as ameaças eram papo de bebum. E ter o Samuel como guia passava confiança, pois ele é conhecido e respeitado em todo o território Xerente. De qualquer maneira o céu estava lindo. Era a final da Copa Libertadores, Santos e um time argentino. Alguns queria assistir, mas tava difícil de arrumar uma televisão. Acabou que todos dormiram cedo mesmo.




23/06/2011 – Quinta-feira – Bela Vista – Pedro Afonso



Acordamos bem cedo. Logo o cacique veio nos dar as boas vindas. Lhe entregamos os mantimentos que trouxemos como presente. Gravamos uma boa conversa com ele. Falou de diversas coisas, como a relação deles com a Investico, empresa que construiu a usina: como ação compensatória para os índios por causa da barragem, a empresa ia na aldeia e plantava uma roça. Os índios tinham o trabalho de colher depois. Muito estranho essa atitude, pois isso deixa qualquer um mal acostumado e dependente. Depois simplesmente pararam de fazer a plantação e deixaram os índios na mão. A velha história de em vez de dar o peixe, ensine a pescar... Um curso de capacitação, financiamentos e outras coisas teriam sido muito mais útil.



A remada nesse dia foi de 48 km. A correnteza estava boa e fizemos média de 10km/h. Hoje remei com o Emerson. Sempre remo com a Flor e quando o parceiro de embarcação é trocado, tenho que me adaptar ao seu posicionamento no banco e estilo de remada, que sempre acaba tombando o barco para um dos lados. Mas a adaptação é rápida.



Chegamos em Pedro Afonso, nos alojamos e fomos para a praça jantar. O bombeiro Robson nos contou umas histórias de seu pai bem interessantes. Ele participava de um consórcio para comprar um fusca, de um grupo que havia chegado na cidade. Acabou ficando amigo do pessoal da empresa. Só não sabia que o consórcio era uma grande farsa, apenas para tomar o dinheiro dos incautos. Mas como os golpistas gostaram dele, antes de quebrar a praça e sumir no sertão, deixaram o pai do Robson contemplado. Tempos depois ele vendeu o Fusca e comprou maquinário para montar o primeiro cinema de Guruí. Ia gravar com ele esta história, mas ficou pra trás.





24/06/2011 – Sexta – Pedro Afonso



Dia de cidade. Hotel, trabalho de gabinete, escritório ou outra coisa que você quiser chamar, que faz parte de uma viagem que alterna dias no rio, dias em cidades minúsculas e outros em cidades maiores. Pedro Afonso é média. Tem praças bonitas. Dizem estar experimentando um crescimento rápido devido ao agronegócio implantado na região. Os moradores que conversei estavam empolgados, apesar de saberem do desmatamento gigantesco que ocorre nas matas do entorno da cidade.



Era pra ser um dia de produção das entrevistas, pois no primeiro dia na cidade temos que ser ágeis. Sempre temos pouco tempo pra produzir as entrevistas. Podíamos ter gravado algo à tarde mas não foi feito nenhum movimento. Acabei cuidando um pouco das contas da viagem, que é uma parte chatíssima. Faltam poucos dias para a chegada da Dani e hoje comprei suas passagens pela internet. No fim da tarde saí para correr. Falando das cidades separadas por rios, aqui tem algo bem inusitado. Pedro Afonso está na barra dos rios Tocantins e Sono. Na margem direita do rio Sono está a cidadezinha de Bom Jesus. Construíram uma passarela por cima do rio unindo as duas cidades! Deve ter uns 600 metros. O tráfego é intenso, tanto de bicicletas como de pedestres. E o visual incrível.



Gastei também um tempo adquirindo novos HDs para armazenamento das imagens do longa metragem. Fiz uma média geral e devemos consumir cerca de 5 teras...





25/06/2011 – Sábado – Pedro Afonso



Acordei cedo e dediquei a primeira hora do dia ao ócio criativo, assisti um trecho do filme “F for Fake”, do Orson Welles. Me deu certa inspiração para um problema do filme no qual eu estou trabalhando. Alguma mistura de ficção de uma ficção mistura de realidade, que existe em uma música e que pode ser transplantado para o documentário de certa maneira ficcional. Meio ininteligível isso que escrevi, mas é de propósito, para não entregar essa parte do filme. Espero que eu me lembre o que isso significa depois.

Adquiri uma rede de algodão. Estou com duas de naylon. Uma vermelha e antiga, que ganhei do meu pai, quando ele esteve em Belém. Essa rede recebe o apelido de rede de pára-quedas ou rede de garimpeiro... Agora escrevendo que me lembrei de onde veio a rede e pra onde ela está voltando. Tava pensando em passar para Dani levar pra BH, mas segue na minha mala como amuleto. A rede de algodão é mais pesada e volumosa, mais pode propiciar mais conforto.



Fomos para a aldeia Xerente chamada Traíra, por ocasião da festa. A festa havia sido iniciada ano passado, porém fora interrompida devido à morte do cacique. As primeiras horas foram pra ambientação. Os índios tem um ritmo um pouco parecido com o meu, calmo. Me senti bem entre eles e deu pra sentir um sangue indígena pulsando nas minhas veias. Acompanhamos diversas danças que eles fizeram no grande pátio da aldeia. Prestigiei também a corrida de toras. Os times, tanto masculino como feminino, eram divididos entre casados e solteiros. Formam-se então dois grandes grupos e todos tem que carregar a tora pelo menos um trecho do trajeto. Os mais fortes acabam carregando mais tempo. No time das mulheres há um homem que faz o papel de técnico e, quando um time abre uma distância muito grande, ele corre com a tora para equilibrar a disputa, mas só até alcançar o time que vai na frente. Ou até o momento em que suas forças permitem. Algo muito bonito é o cuidado que eles tem com as crianças da aldeia. Elas sempre participam das atividades. Há uma versão infantil da corrida de tora, onde o pesado tronco de madeira é substituído por uma vara bem leve. Aí desde pequenos já tomam gosto pela cultura.



O saco de dormir na rede que não permite muita movimentação e o modelo que estou usando, que afunila nos pés é pior ainda. Mas segura bem o frio. Aí o lance é acordar, sair do saco de dormir e espreguiçar por uns cinco minutos para desentrevar o corpo.





26/06/2011 – domingo – Traíra – Pedro Afonso



Hoje é o último dia na aldeia. Encontramos um pessoal de Miracema que estava fazendo um documentário, o diretor era o Edvaldo Xerente, que já tem um vídeo no youtube que se chama Dasihâ Zumze. Tentei passar umas imagens que fiz da dança pra ele, mas seu notebook não reconheceu a câmera. O pessoal nos reconheceu, perguntou se éramos da Rota do Sal, tinham visto a matéria que saiu na TV. Havia um pessoal do Cimi fazendo a gravação da festa também. Eles iam entregar o material bruto para os índios assistirem depois. O moço que estava filmando disse que eles gostam também dos planos abertos, para poderem reconhecer o local onde a gravação foi feita. No total haviam cinco câmeras filmando e pra qualquer lugar que apontasse a minha haviam algum intruso com a câmera na mão. A festa aqui, que tem o objetivo de reunir os clãs das diversos tribos Xerentes da reserva. Como disse antes, há um pátio central na aldeia onde se concentram as danças e também é o ponto de chegada da corrida de toras. Nele há uma parte coberta com cerca de 12 metros quadrados, onde se protegem do sol os anciãos e quem mais couber. Em volta desta praça estão as casas e a escola. Os convidados se arrancham embaixo de antigos pés de manga, onde também coloquei minha rede. A equipe combinou de montar equipamento uns próximos dos outros. Até o momento tenho percebido que os xerentes dançam muito, discursam, repartem comida e põem a prosa em dia. Há muitas crianças e é bom vê-las brincando e conversando na língua deles. Sopra uma brisa fresca, o que torna a sombra das mangueiras ainda mais agradável. O discurso do ancião Severo, de 97 anos foi denso, falou de Pedro Álvares Cabral, que seu povo já estava aqui... Que o branco está destruindo tudo... Compartilho de seu lamento. Quase tudo nesse mundo é uma grande competição por riqueza, movida pela ganância. Nada nunca mais será como antes depois desses 500 anos.


Hoje quando acordei fiquei com vontade de falar no microfone da festa, no mesmo em que volta e meia um dos índios vinha discursar. Queria agradecer por estar vivo, agradecer a todos que haviam nos recebido e compartilhado os momentos de sua festa. Parabenizar a beleza e a alegria do povo, a dança, a corrida, a música, o alimento. Dizer que é bom ouvi-los conversando em Gê. E desejar vida longa a todos os xerentes. Acho que não vou ter coragem de quebrar o protocolo do cerimonial deles, a mim, por enquanto, essa idéia soa como uma intromissão. Mas quem olhar para minha cara vai perceber como me sinto...





27/06/2011 segunda-feira – Pedro Afonso



Esse foi o último dia em Pedro Afonso. Conversei com o Sr. Aderson. Ex-piloto de barco em diversos rios do Brasil. Já havia ido muito a Carolina buscar mercadorias. Também tinha trabalhado para o Alair Martins, dono do Armazém Martins. Tinha uns 84 anos e disse que o segredo da juventude é não ter frescura de ficar adoecendo a toa. Que já dormiu muito no sereno e isso é bom demais e que já fumou muita maconha. Adora o rio e tinha uma muda de cupuaçu que trouxe lá de Belém. A minha muda que plantei no Cipó não resistiu à seca e morreu, vou plantar outra, porque quem tem um pé de cupuaçu, tem tudo.



Gravamos também com o pessoal da praça Ecológica, feita com mais de 100.000 garrafas pets. Normalmente eu não curto muito canteiros de pet, mas nesse caso até que deu um efeito interessante, além do mais o exemplo de recuperação de uma área que era um lixão, bem como a mobilização popular, principalmente das crianças, deixa a coisa mais bonita. Gravamos como professor Fabrício, seu amigo e colaborador no projeto Mateus e diversas crianças. Falaram muito bem sobre reciclagem, educação e demonstraram o carinho que tem pela praça. O prefeito deu o ar da graça e prometeu terminar a praça até o fim de agosto se não me engano.



A noite comemos pizza pelo quinto dia consecutivo. Tinha gente que não agüentava mais. Ainda sobrou pra levar na viagem do dia seguinte...





28/06/2011 - terça-feira – Pedro Afonso – Itaperantins



Faltava pouco para a chegada da Dani e eu estava numa expectativa muito grande. Ô saudade! Ia remando e rindo sozinho, feliz da vida, pensando nela. No seu cheiro. Nos beijos e na companhia que ela me faz.



Saímos tarde nesse dia, começamos a remar já por volta das onze horas e o sol estava quente. Quente mesmo.



A noite paramos para dormir numa parte do rio onde o barranco estava limpo e era utilizado por gado para beber água. Ganhamos umas laranjas grandes e doces dos moradores. Fizemos uma fogueira e uma macarronada. Quando todos já tinham ido dormir, eu, Ton, Emerson e Robson admirávamos o fogo, quando ouvimos algum bicho cair no rio, próximo de onde estávamos. Meu irmão ligou a lanterna e vimos dois olhos refletindo luz vermelha. Ficamos em dúvida se era uma capivara ou um jacaré. Nos aproximamos e os olhos começaram a vir em nossa direção. Saímos correndo e rindo. O bicho afundou... voltamos pra perto da fogueira. Uns quinze minutos depois os olhos vieram para a superfície. Fizemos nova incursão, nos aproximamos lentamente... dessa vez deu pra distinguir direitinho! Era um jacaré, com cerca de um metro e pouco de comprimento. Através da água transparente do rio podíamos ver seu corpo inteiro. Grata surpresa ver o bicho no rio, o primeiro da viagem. São bem raros nessa região, pois já foram bastante predados pelo bicho homem. Tentei filmar, mas a luz era pouca. Numa tela maior que o LCD da câmera deve dar pra ver algo.



29/06/2011 - quarta-feira – Itaperantins



Remada rendeu bastante no rio, boa correnteza... Chegamos relativamente cedo a Itaperantins, que tem como cidade irmã Tupirantin, do outro lado do rio. Pela manhã Emerson Caverna do Sabará recebeu os cumprimentos pelo seu aniversário e um empurrão no rio quando subia no caiaque. Fez uma cara de bunda, mas ao assimilar que era um trote de aniversário começou a rir...



Fomos recebidos com grande amizade por João Olívio, que nos alojou na casa de sua mãe. Gravamos com ele uma conversa sobre o rio, sobre a represa e a situação geral dos moradores da região. À noite fizemos um churrasco na casa do João para comemorar o aniversário. Todos, de alguma maneira, conseguiram chegar sãos e salvos em suas redes e camas. A cerveja correu solta.





30/06/2011 - quinta-feira – Itaperantins – Tupirantins



Passamos o dia na cidade. Atravessei com o Ton para gravar com duas pessoas do outro lado. Seu Ozório, amante do rio, que passa a tarde vendo as águas correrem e isto lhe dá grande prazer e dona ...... , uma das pioneiras da cidade, que junto com seu marido, iniciaram o comércio e a escola local. Ela gostou muito de conversar conosco, mostrou uma pasta cheia de recortes de jornais e contou sobre a história da cidade. Pediu que ligássemos pra ela quando chegarmos à Belém, bem como, ao retornamos à cidade, que visitássemos sua casa. Fazer filmes é fazer amigos...





01/07/2011 – sexta-feira – Itaperantins – Palmeirante



Virada de semestre... Esse ano passa rápido. Coisa chata e velha isso do tempo correr demais. Puxa a rédea.



Ainda remamos com correnteza, o que torna o trecho mais prazeroso e leve. No dia anterior havia visto outro jacaré, um pouco menor que o primeiro. Agora durante o dia, boiava tranquilamente. Quando percebeu nosso caiaque, afundou.



Dormimos na ilha do Cará, que rebatizei de ilha da Coceira. Haviam várias espécies de pernilongo, árvore da coceira e a areia também coçava. Apesar de tudo foi um dos acampamentos mais bonitos.



Dormi pensando em Dani e no nosso encontro no dia seguinte. Devo ter adormecido sorrindo.





02/07/2011 – sábado – Itaperantins – Palmeirante


Chegamos na hora do almoço. Parte da equipe foi comer. Eu e Dedé ficamos vigiando as bagagens no barco e aguardando um frete. Subimos com tudo para o hotel numa L200, que na segunda viagem subiu com os caiaques atravessados. Maneira incorreta de fazer o transporte, porém a distância era pequena. O risco do caiaque bater em alguém, num poste ou árvore é muito grande... Pois 5,40 metros é quase a largura da rua!



Fiquei tentando falar com a Dani, que já havia chegado em Imperatriz na noite anterior, dormido por lá e na manhã de hoje iniciado a viagem para Palmeirante. O orelhão em frente ao hotel estava rebelde e nenhum dos meus chips funcionava na cidade. Tive que ligar em BH para pedir pra Marília dar o recado pra Dani, de qual hotel eu estava e um número pra ela me ligar. Nos falamos rapidamente. Agora era só esperar, por volta das 18h ela chegaria. E chegou. Foi o maior tempo separados nesses 6 anos de namoro. E ao nos abraçarmos pudemos sentir os corações palpitando, como eu ficava imaginando enquanto remava nesses últimos dias...





03/07/2011 – Domingo – Palmeirante



Era pra partimos nesse dia rumo a Barra do Ouro e depois Carolina. Porém o nosso piloto atrasou um pouco e tivemos que ficar por lá. O que não foi ruim, demos umas voltas de caiaque, descansamos, curtimos a praia e a noite comemos um churrasquinho, com tropeiro e mandioca cozida, que estava ótimo. Folga pra equipe. À tarde assistimos o jogo da seleção contra a Venezuela, pela copa América, que não passou de um zero a zero. Fiquei com vontade de gravar com um senhor dono de uma grande embarcação que transportava gado, pessoas, mudanças... pelo rio e que agora estava sem serviço por causa da barragem, mas acabei não o reencontrando. Um filme também é feito de ausências.





04/07/2011 – Segunda – Palmeirante – Barra do Ouro



Remamos na represa desde a ilha da Coceira, sem correnteza e com vento, na maioria do tempo contra nós. Paramos para alguns mergulhos no meio do lago, que estava com uma temperatura ótima. Nosso plano era passar direto por Barra do Ouro. A distância para até Carolina é de 85 km. Mas no lago os pontos para acampamento estavam escassos e optamos por dormir na praia artificial de Barra do Ouro. Foi bom porque não tivemos que fazer grandes movimentações com a bagagem, caiaques, barcos de apoio e equipamentos. Mas foi uma noite barulhenta, pois as balsas trafegaram ininterruptamente e os trabalhadores de uma ponte em construção também vararam a noite labutando. Gabi e Flor comandaram um delicioso jantar. Uma maria izabel, também chamada de sirigado, que consiste em carne de sol cozida com arroz. Desta vez incrementada com milho, queijo e creme de leite. Baxter também recebe a visita de sua mulher, a Joana. Então agora a expedição conta com 13 pessoas.





05/07/2011 – Terça-feira – Barra do Ouro – Carolina/Filadélfia



Acordamos às 6 horas e às 8h20 estávamos no rio. Foi um dos dias que fizemos o processo todo de tomar café e desmontar o acampamento mais rápido.



A remada foi cansativa. Uns membros da equipe acabaram discutindo e se estressando, fato que repercutiria demais no fim do dia e no dia seguinte. Chegamos em Carolina depois de 50 km no lago. Pegamos muito vento contra na barragem, que começou a ser enchida em dezembro do ano passado e chegou no volume final dois meses atrás. Os moradores que optaram ou conseguiram continuar morando nas margens, ainda estão se habituando com a nova dinâmica das águas. Paramos para lanchar num área descampada, com alguns pés de mangas. Caminhamos um pouco por uma trilha e chegamos numa casa, onde morava um senhor e seus filhos. Um deles nos contou que fazia um frete para um vizinho com sua canoa carregada de mexericas pokan. Mais de 4.000 frutas. Começou um banzeiro que virou a canoa e seu motor de rabeta afundou e se perdeu nas águas da represa, que em certos pontos tem 20 metros de profundidade. As frutas boiaram, o dono conseguiu juntar um tanto... outro tanto foi sendo levado pelo vento e pela maré e durante alguns dias várias pessoas colheram bergamotas, pontos laranjas que boiavam nas águas azuis.



Nova cidade, novas ruas. O olhar pousado no que não fora visto nunca. Que com o passar dos dias vai ser tornado familiar. Descobrir onde comer, onde estão as boas estórias, qual sombra de árvore é mais fresca, trabalhar, descansar, se entediar ou não e partir.



Uns bons metros antes de aportar vi Dani nas margens da represa em Carolina. Acenei diversas vezes mas ela não viu. Remei rumo à miragem predileta e poucos minutos depois estava beijando a mulher da minha vida.



À noite Emerson anuncia que vai abandonar a expedição e voltar pra casa. Pede sua passagem... Conversei com ele, saímos pra caminhar pelas ruas de Filadélfia discutindo o que estaria o levando a decidir isso. Disse estar mais calmo e que seguiria viagem.





06/07/2011 – Quarta-feira – Carolina/Filadélfia



Acordamos, tomamos café e a equipe se reuniu para uma reunião. Cada um falou um pouco, na hora que chegou a palavra ao Emerson ele disse que ia embora novamente. Aí foi o dia em torno disso, até que ficou decidido que ele partiria na sexta-feira pela manhã.



A noite eu e Dani fomos dar uma volta em Carolina e voltamos cochilando na balsa...





07/07/2011 – Quinta-feira – Carolina/Filadélfia



Inusitadamente fomos despejados do hotel. A senhora Joana, proprietária, pediu-nos a gentileza de sair pois ela tinha uma consulta médica marcada e não tinha ninguém pra tomar conta do hotel. Assim o resto do dia foi praticamente para providenciar nossa mudança, arrumar um caminhão para transportar a tralha, um novo hotel etc. Emerson resolveu ficar. Choro e abraços. Equipe em riso. Primeira crise superada. Espero que não venham outras.





07/07/2011 – Sexta-feira – Carolina/Filadélfia



Dia para procurar por personagens na cidade, começar a ler “Primeiras estórias” do Guimarães Rosa.



Eu e Dedé havíamos dividido algumas tarefas do filme e uma das minhas era agendar uma entrevista com Pedro Iran Pereira do Espírito Santo, dono da empresa que tem por nome suas iniciais – Pipes. Digitando seu nome no Google pode-se descobrir um pouco de sua história, a história de um dos homens mais ricos do Maranhão, que começou a vida atravessando leite na canoa de Filadélfia para ser vendido em Carolina. Era pobre e só tinha a quarta série. Hoje seu patrimônio chega na casa dos bilhões, segundo me disseram pelas ruas da cidade. Perguntei por ele em seu escritório, a secretária disse que ele estava na oficina e que se eu esperasse um pouco ele voltaria. Depois de uns 15 minutos ele apareceu na porta e ficou conversando com alguns de seus funcionários. Estava um pouco ruim para abordá-lo, fiquei esperando que terminasse. De repente ele se caminhou até sua caminhonete, uma For da década de 80 e tinha ao seu lado uma jovem de uns dezoito anos. Cheguei na janela e me apresentei, falei do filme e que queria gravar com ele. Disse que na segunda pela manhã poderia.



Ao fim do dia fiz umas imagens do pôr-do-sol no rio e o movimento da balsa no porto. Ficaram boas. Ton descobriu que tem como filmar no modo automático na 5D e isso dá certas vantagens, inclusive me possibilitou fazer essa tomada, que tinha prevista fazer com a FX1. Enquanto gravava vi que um barqueiro chegava em sua voadeira. Me aproximei dele e trocamos umas ideias, falei do meu filme e da expedição... combinamos uma gravação para o dia seguinte, ele convidaria o presidente da associação dos barqueiros e outros colegas. Ao lado havia uma placa dizendo que os barqueiros de Carolina e Filadélfia pedem socorro, pois com o lago, perderam sua fonte de renda.




09/07/2011 – Sábado – Carolina/Filadélfia



Acordei cedo e fui escrever um pouco. Tenho estado como um cachorro tentando morder o próprio rabo com esse diário. Já mudei o método, em vez de escrever tudo no caderno azul e depois digitar, escrever apenas sínteses que serão desenvolvidas posteriormente. Tenho tido problemas com o computador, pois o meu está sendo usado como a ilha de edição da expedição e grande parte do tempo ele fica ocupado, assim não tenho acesso a ele sempre que preciso, o que tem prejudicado minhas pesquisas e meus estudos ao longo da Rota, bem como a manutenção do diário, que vem sendo feita em grandes blocos e está atrasada, pois no site a última atualização foi no final de abril! Mas fiz um mutirão de um homem só e agora entro no ritmo. Numa expedição hiper midiática, todos os meios de registro se confluem e as anotações serão muito úteis como um indexador da memória e das emoções.



Se a memória é uma ilha de edição, na Rota do Sal a minha baila por arquipélagos. Junto com frações de outras, que relampejaram diante das lentes, dos ouvidos atentos, dos cartões de memória, que abarrotam hds, que são o ouro da viagem e seguem em um saco estanque, na minha velha mochila amarela. Tantas estórias, quilômetros, rostos, cidades, apresentações e despedidas. Às vezes me confundem e perco a trilha do tempo. Qual cidade estive ontem, quem falou tal frase da qual em lembro agora. Se tudo parecer um sonho permaneça adormecido. E se ela me inspira, beijo-a todos os dias da minha vida.



A conversa com os barqueiros foi tiro certeiro. Caminhar pela cidade distraidamente concentrado te leva para bons personagens. É como o “estado onírico de vigília” que Bernadete Biagio me falou certa vez. De você estar acordado e meio que sonhando ao mesmo tempo, divagando, com os poros abertos à recepção das boas ideias. De se contar com o acaso e caminhar por linhas tortas em busca dele, saindo da principal para se tomar os atalhos e desvios. Os ribeirinhos barqueiros falaram das mudanças que vieram com hidrelétrica, da queda da renda que tinham transportando os passageiros, que seus barcos são próprios para o rio e não para a represa e não conseguem navegar, pois sucumbem ao banzeiro. Dizem que o ser humano tem a capacidade de se adaptar rapidamente às novas situações. É o que muitos ribeirinhos tem feito, a duras penas. De exceção à regra me comovi com o senhor que tomou chumbinho depois que teve que mudar de casa por causa do remanejamento. Essa foi a última coisa que me disse seu Antônio, antes de nos despedirmos e cada um seguir seu caminho pelas ruas de Carolina, após um breve passeio de voadeira para ver alguns barcos quase totalmente afundados, abandonados por seus donos, que agora matutam pra arrumar novo meio de vida. Sem a receita dos fretes de carga e transporte de passageiros não há como fazer a manutenção anual dos barcos. Dani me acompanhou nesta conversa, gosto demais quando ela trabalha comigo, o que fazemos em alguns projetos.





10/07/2011 – Domingo – Carolina/Filadélfia



Ontem começou uma folga coletiva de 4 dias para a equipe. Um momento de descanso, atividades livres, fazer o que quiser sem ter que se preocupar com a expedição e o filme. Eu e Dedé alternamos o descanso com momentos de trabalho. De alguma maneira a Rota do Sal Kalunga não pode parar e as mãos ora estão segurando os remos, ora as câmeras. E a cabeça... a cabeça 24 horas por dia ligada. Pra mim a expedição cinematográfica é um misto de trabalho duro, férias, pesquisa de mestrado, aventura... E tudo mais que conseguir colocar nesse liquidificador atômico e visceral que trago dentro de mim em moto continuo.



Já era perto de meio dia quando eu e Dani saímos para algumas fotos. O destino era o mercado da cidade. Porém chegamos tarde e já estava fechando, mas a ida rendeu algumas fotos internas e uma conversa em ofá com uma verdureira, que contou que depois da barragem, a produção de hortifrútis caiu bastante e alguns vegetais inclusive deixaram de ser cultivados, pois de ribeirinhos os moradores passaram a sertanejos. E a técnica é totalmente diferente, bem como a viabilidade de certas culturas.



Descemos um pouco mais a rua, o sol chicoteava. Em um lote vago achei uma poltrona queimada, que me lembrou muito o artista francês Armam. Consegui uma bela foto com o lago ao fundo. Mais cinquenta metros de caminhada estávamos na beira da água, próximos dos barcos afundados. Lamentei não ter trazido a Gopro para umas imagens subaquáticas, mas deixei planejado mentalmente para outro dia, só não podia demorar muito, pois partiríamos em breve e sabe-se lá se encontraria outro barco naufragado, carregado de tão forte simbologia.





11/07/2011 – Segunda – Carolina/Filadélfia



Acordei, tomamos o gostoso café da pousada com biscoito frito escaldado de polvilho com erva -doce bomba de gordura matinal.



Logo era a entrevista com o Pedro Ivan. O midas do centro-oeste, onde toca vira ouro. Dedé havia sido acordado por volta das sete horas da manhã pelo jornalista e depoente do nosso filme, o jornalista Valdir Braga. Falaram na recepção que ele estava dormindo, mas o Valdir, nos seus 82 anos mandou falar que podia acordar. Desperto, não conseguiu pegar no sono novamente e foi terminar de curar sua ressaca no escritório do Pipes.



Entrevista foi interessante, primeira vez que converso com um bilionário. Contou como evoluiu de entregador de leite a empresário, falou sobre o rio, sobre a premonição que teve e o levou a construir uma balsa. Hoje ele é dono de mais de 100 balsas pelo Brasil a fora, aviões, helicópteros, do aeroporto de Carolina, de n fazendas e casas e por aí vai. Vamos ver como ele entra no filme depois...





12/07/2011 – Terça – Carolina/Filadélfia



Saí com Dani para fazer a filmagem dos barcos submersos. Estou com uma ideia para uma videopoesia.



Durante a Rota do Sal estou realizando dois estudos orientados ligados ao mestrado, sob tutela do meu orientador, prof. dr. Wagner Moreira. Um deles é intitulado “Fluidez e conectividade na Rota do Sal Kalunga” e trata da produção videográfica conectada à poesia e às emoções ribeirinhas e dos ribeirinhos. O outro é o “Kalunga om video”, que é uma oficina de videopoesia realizada em território kalunga. Ambos estudos são realizados com uma bibliografia selecionada especificamente que transita entre a poesia, o cinema etnográfico, a videoarte, a tecnologia, a tradição... Prática e teoria reunidos e aliados a um projeto de cinema do porte da Rota do Sal. Quando me formei em comunicação social na Pu, saí da faculdade meio sem rumo e ao mesmo tempo com uma vasta gama de possibilidades e energia jovem pra investir em algo. Meu processo com o cinema era algo antigo e novo. Desde criança ouvia algumas músicas e gostava de imaginar os filmes que elas dariam. Tinha uma sensação boa com isso e era um exercício que realizava constantemente. Pensava em fazer um filme um dia, mas não era uma certeza. Na época que saí da faculdade tinha isso já como uma certeza, tinha tido contato com as câmeras de vídeo digital, feito duas videopoesias e rodava um documentário junto com o Dedé. Tinha uma queda pelas Ciências Sociais, principalmente influenciado pelo documentário etnográfico. Ingressei na UFMG, terminei uma faculdade e comecei outra. No início foi ótimo, as festas, os novos amigos, um bis da primeira e a vida seguia linda. No primeiro semestre já começaram algumas decepções. Queria estudar os grandes pensadores, mas queria também beber em fontes brasileiras. Estava fortemente influenciando pelo Darci Ribeiro e sem paciência para revisitar séculos de sociologia francesa e inglesa. No segundo semestre me matriculei numa isolada ministrada pelo prof. Ruben Caixeta, que deu novo gás para que eu continuasse, sobre o cinema etnográfico. Porém ele pediu licença devido à perda do irmão, que se suicidou. Dor lancinante que eu experimentaria poucos anos depois. No terceiro semestre optei por interromper o curso, continuar meus estudos por conta própria e liberar mais tempo para o cinema. Decidi que retornaria à academia mais tarde, para fazer um mestrado. Projeto vai, projeto vem, um filme aqui, outro acolá... O trabalho na pré-produção da Rota se iniciou em 2006, muita pesquisa, busca da viabilização financeira etc. Era algo mítico na Avesso Filmes e para os amigos e parentes que acompanharam o processo. No início de 2010 resolvi fazer o mestrado. Preparei o pré-projeto, fiquei sabendo do mestrado em “Estudos de Linguagens” no CETEF MG e sua proposta casava com o que eu pesquisava e produzia no meu cinema. Passei no processo seletivo, comecei as aulas e recebi a notícia, na sequência, que finalmente a Rota do Sal sairia do papel e dos sonhos para se concretizar. No início um transe, um nó: como me dedicar a dois projetos grandes, que tomam tempo e necessitam de uma grande dedicação. A solução foi vindo aos poucos, depois de muita matutação, conversas com o prof. Wagner e com a coordenadora do curso prof. Olga Valeska. Na verdade tudo já estava muito conectado, faltava perceber. Meu projeto de mestrado é sobre videopoesia, envolvendo sua análise e produção. Na produção deste filme a poesia é encontrada em estado bruto, a cada quilometro navegado, a cada sorriso de alguém que conheço em alguma das margens do rio... A solução então era aproveitar o filme para enriquecer a dissertação e obviamente o filme também é influenciado por ela. Satisfação poder convergir dois desejos que inicialmente aparentavam não estarem conectados.



Enfim, o mergulho junto aos barcos rendeu boas imagens e enquanto prendia a respiração e submergia com o óculos de mergulho emprestado pelo Baxter, partes do roteiro iam sendo escritas mentalmente.



Dani fazia o registro do trabalho da beira do lago. Antes que eu entrasse, só pediu que eu me lembrasse que enquanto eu me refrescava e filmava, ela estaria sob o sol escaldante do Tocantins.





13/07/2011 – Quarta-feira – Carolina/Filadélfia - Babaçulândia



Dia de remada. Acordamos cedo e aguardamos o suporte terrestre que conduziria a equipe, os caiaques e nossa bagagem para a beira do lago. Antes uma questão burocrática a ser resolvida a respeito de uma nota fiscal da hospedagem. Tudo certo, barco n'água, com o conhecido atraso que geralmente ocorre quando partimos de uma cidade. O pessoal até resolveu almoçar antes.



Dani e eu iniciamos a remada, pois Flor gentilmente cedeu seu assento no caiaque. Foi divertido e bom demais ver os olhinhos dela brilhando de alegria. Assim como os meus deviam estar. Ela deu sorte de ter vindo justamente na hora em que a expedição atravessava um dos trechos mais bonitos, da Chapada das Mesas e a paisagem era cheia de montanhas. Neste dia remamos um pouco à noite, sob a luz da lua cheia. O pôr-do-sol remetia levemente à aurora boreal, que eu espero poder ver ao vivo um dia. Afago nas retinas.



Chegamos à noite e fomos recebidos pelo Leandro, secretário de meio ambiente, que estava com uma estrutura de transporte armada e fomos, com a tralha toda, para um hotel.





14/07/2011 – Quinta-feira – Babaçulândia



Véspera da partida de Dani... O coração apertava e aproveitamos todos os segundos juntos. De tarde saímos com a equipe quase toda para gravar uma entrevista com seu seu Tódi, um senhor ex-barqueiro que tinha boas histórias pra contar do rio, agora represado.



Nesse trecho as pessoas ainda estão em fase de adaptação à nova realidade. De um rio que foi dilatado, como um grande aneurisma. Engolindo pedras, cachoeiras históricas, margens, ilhas...



A entrevista com ele foi bem legal, sua memória está bem viva, inclusive lembrava o nome de várias embarcações e os que não guardava na cabeça, tinha anotado num caderninho. Assim como D. Eva dos kalungas, que tinha um caderninho com os nomes de todas as mães e crianças que fez o parto. Assim como eu, que vai escrevendo o caminho deste filme.



Sugeri ao seu Tódi que déssemos um passeio em um barco que fazia a linha de passageiros na região. Ele gostou da ideia e fomos ter com seu Sebastião, que gravou um belo depoimento e nos levou em sua barca de ponta aberta para uma breve navegação na represa, em frente Babaçulândia.



A noite caiu devagar para todos os casais do mundo que por algum motivo teriam que se separar no dia seguinte.



15/07/2011 – Sexta-feira – Babaçulândia



Pela manhã fomos ao assentamento na área rural do município, visitar os antigos moradores da ilha de São José. Grande faixa de terra, com 14 km de extensão por 1 km de largura, onde chegaram a residir mais de 100 famílias. Vivam da agricultura, do extrativismo e da pesca. Os barcos de ponta chata eram importantíssimos para o transporte de pessoas, mercadorias e gado. A pecuária também era forte, assim como as disputas pela posse das férteis terras ilhadas. Seu Lázaro nos recebeu muito bem e disse estar satisfeito com a nova terra e empolgado foi nos mostrando as plantas que cuidava diariamente. Comparou a fertilidade da nova terra com a da ilha e disse que no continente só tinha 2% da qualidade da sua ilha querida. Mas não ficou se lamentando, enxada na mão, semente no chão, água do poço pra regar, casa de alvenaria pra morar... Disse que no momento pelo menos a produção de filhos estava grande, já que a terra andava meio devagar! E seus dois filhos pequenos brincavam felizes pelo quintal, enquanto o recém nascido dormia numa rede, sonhando os sonhos de quem tem trinta dias de vida. Deixamos seu Lázaro, na vitalidade dos seus sessenta e poucos anos, para seguir nosso caminho.



A tardinha fui com Dani na cidade vizinha, acompanhá-la até a rodoviária de Araguaína, de onde tomaria um ônibus para Imperatriz e um avião no dia seguinte para BH. A despedida foi adiada até o último instante. Meu baque já tinha se dado uns três dias antes, quando senti uma saudade antecipada e fiquei o dia quase todo amuado, apesar dela estar ao meu lado. Nesse dia, menos resignado com sua partida do que feliz por ela ter vindo, estava relativamente tranquilo. Na rodoviária, após ter me despedido, fui em direção ao carro, depois de ter andado uns quarenta segundos, voltei para lhe dar mais um beijo. Lágrimas, corações apertados, doces sorrisos, melancolia premeditada, amor crescente, frases de para-choque de caminhão... E uma saudade medida em quilômetros e remadas.





16/07/2011 – Sábado – Babaçulândia – Aguiarnópolis



Últimos dias na represa de Estreito. Remamos 43 quilômetros neste dia, a paisagem continuava linda, cheia de chapadões no horizonte, montanhas recortadas em diversos formatos. Nos aproximamos de um babaçu semi submerso para filmar e Flor descobriu um grande calango ilhado. Espero que tenha sobrevivido e nadado até a margem do lago, pois quando percebeu nossa presença, partiu num mergulho e nadou debaixo d'água. Dormimos em uma fazenda, numa área descampada, arada para se plantar. Cheio de pernilongos, seguimos nosso treinamento de resistência para os insetos, que prometem recrudescer o ataque. Pegamos muito vento contra e a remada foi puxada.





17/07/2011 – Domingo – Babaçulândia – Aguiarnópolis



Acordamos cedo, tomamos café e partimos. Tínhamos que chegar no ponto da transposição da barragem por volta das 16h30. Fomos calculando o tempo, no meio do caminho paramos numa praia. Chapei na água de coco, pois nunca tinha tido algo pra beber nos dias de remo. Alguns foram na cerveja, mas pra mim álcool e atividade física não combinam. Gosto de beber sem compromisso de ter que fazer algo, tirar as horas pra isso e pronto. Se tiver que produzir algo, fazer algum esforço etc não bebo e além do mais procuro manter uma relação o mais salutar possível com o álcool, bebendo uma ou duas vezes por semana no máximo e evitar ter isso como um hobby, como preenchimento de vazios e coisa e tal. Isso serve pra qualquer droga, desde o cigarro ao café, do chocolate ao refrigerante. Passando pelas pesadas. Nenhum vício me pega mais depois de ter fumado uns 8 anos da minha vida e parado.



Fizemos a transposição, chegamos no hotel em Aguiarnópolis, não assistimos à derrota da seleção para o Paraguai na Copa América. Jantamos num posto de gasolina lotado de caminhoneiros e dormi num quarto frio de ar condicionado e seco, que gerou uma dor de cabeça fina e constante no dia seguinte e deu origem a uma empezinhar de merda.





18/07/2011 – Segunda – Aguiarnópolis



Dia enfurnado no quarto vendo emails, discutindo projetos, mergulhando em números...





19/07/2011 – Terça – Aguiarnópolis – Tocantinópolis - To/Porto Franco – Ma



Acordei com a garganta inflamada e remar nesse dia, sob um sol escaldante não foi umas das coisas mais agradáveis da vida. Ainda bem que era rio e a correnteza estava rápida. Descíamos a 10 km/h sem esforço, contra os 7,5 a 8 km/h da represa, com esforço. Atravessamos a corredeira de Santa Maria, um trecho de mais de 2 km de corredeiras. Foi bem legal, relembrei os perrengues do rio Paranã. As duas embarcações a motor triscaram nas pedras ou encalharam, mas nada grave. Os caiaques chiaram bonito. Passei o dia com a garganta inflamada, meio baqueado, mas com certeza amanhã ou depois estou zerado. Ficamos por quatro dias aqui, gravando nas duas cidades que ficam em margens opostas do rio e talvez visitemos uma aldeia indígena.





20/07/2011 – Quarta-feira - Tocantinópolis - To/Porto Franco – Ma



Acordei num banzo de gripe e fiquei imaginando como esse dia passaria. Ou como eu passaria por ele. Levantar da cama pra fazer algo. Produzir algo. Ainda não sabia, sem humores pra esse dia que chegava em branco pra ser preenchido, comecei com um filme. “A escolha de Sofia”. Eram sete horas da manhã e fui revezando entre o filme e o sonho febril. Quando dormia por um período maior, voltava o filme um pouco. Às nove e pouco parei pra tomar café. Depois voltei pra terminar o filme, que se passa no pós segunda guerra. Uma polonesa perseguida sobrevive a Auschwitiz, vai para os Estados Unidos e encontra uma paixão eletrizante com um maluco. O casal fica muito amigo de um jovem escritor e o filme gira em torno deste triângulo e de flashes da guerra. Mais depressivo que a minha gripe, acabei recobrando minhas energias e levantei para trabalhar.



Outro dia estávamos brincando com o calor e nome das cidades. Palmas seria rebatizada para Saunas, Porto Nacional para Forno Nacional, Tocantinópolis para Toquentenópolis, Peixe agora é Peixe Assado, Brejinho de Nazaré é Quentinho de Nazaré... e por aí vai, até onde o termômetro estimular estas bobagens. Falar em termômetro, estou querendo comprar um para acompanhar as temperaturas: do dia, da água, do cokpit etc... Vou procurar por um aqui na cidade.



Tirei o dia pra me reanimar. Me encavernei. Passei o dia na varanda, labutando. Rendeu, coloquei meu diário em dia. Só consegui escrever diários em viagens. E nessa, que está muito longa, é difícil manter o pique. Mas a disciplina vai valer a pena daqui uns anos, quando quiser me lembrar com muitos detalhes cada um dos dias.





21/07/2011 – Quinta-feira - Tocantinópolis - To/Porto Franco – Ma



Dando cabo dos dias. Tentando pegar uns pelo chifre, outros pelo rabo, alguns passando sem se deixarem ser vistos. Tem dias que se desaceleram e desfilam na minha frente, zombando da minha preocupação besta fazedora de cabelos brancos.



Salvando um leão por dia. Simbora.



Rota do Sal Kalunga. Expedição hipermnemônica pela sua natureza condensadora de partículas de estórias que se desenrolam ao longo de um rio. Pegando o rastro da coisa, o começo vem de conversas. O meu aconteceu numa viagem à Chapada dos Veadeiros, quando um amigo que conheci por lá, me falou do Kalunga. Pensei que eu tinha que ir lá um dia. Essas coisas. Assim como penso que também quero ver a aurora boreal. Pensamento impresso de certeza duvidosa sem grande pretensão mas que na sua semente há uma árvore já enraizando. Pensamento que de começo já te leva lá. Que sem se preocupar demais um dia estou madrugando no meio do gelo esperando a aurora boreal aparecer por cima de uma grande montanha. Assim com muito ou pouco esforço, fui para nos kalungas. Não de avião, como me disseram que era o único meio de se chegar lá. O que só fui entender do desentendimento dos outros em maio de 2011, que em algumas comunidades dos kalungas não haviam estradas. A do Vão do Moleque possuía uma pista de pouso, utilizada de seis em seis meses por uma equipe de médicos e enfermeiros que visitavam os kalungas, traziam medicamentos e faziam consultas. No mais o isolamento era rompido a pé ou de cavalo e os enfermos transportados em redes. Os fios das lembranças e dos fatos se costuram. A memória de meu amigo, truncada. A minha confundida. A luz posta nos fatos. Meus pés cruzando a terra socada da pista de pouso do Vão do Moleque. Seu Mochila clareando pensamentos de dez anos atrás.



Mas retornando ao aspecto hipermnemônico desta expedição, é algo que tem me fascinado. De alguma maneira o documentário, pelo menos no estilo avessal, tem um poder de ser o contrário dos relatos de viagem que tive acesso, principalmente escritos por políticos e doutores (médicos, advogados etc) do século XIX. Aqui prevalece a voz daqueles que habitam o rio e não a de quem o atravessa, sentando em um barco, observando os remadores. O cinema tem esse poder amplificador. O que se fala é o que se grava, obviamente há todas as questões relativas à presença do autor, de sua influência na montagem, ou seja da direção. E também da atuação e da representação de quem fala à câmera. Mas no prego firme na parede, o que temos, inquestionavelmente, é a memória de quem fala, condensada em sua imagem e som, a cor do rio nas fotos, os sorrisos dos que recebem essa trupe quem vem de Minas Gerais ao Centro-oeste pagar uma visita. Me impressiona, apesar de ser “filmadeiro” há dez anos, a teia formada entre aparatos dos mais moderno para se captar imagens e o velho esquema papel e caneta, a impressão de cada fala, de cada trecho navegado, multiplicado por sete que descem o rio. Depois cada fotografia é uma descarga de lembranças que atina até a memória olfativa do cheiro da casa do seu Frutuoso, no meio do Kalunga. Até agora 1.100 km navegados, cerca de 4.000 fotos, 50 horas de audiovisual, calos nas mãos que remam... A viagem continua por um bom tempo depois da chegada em Belém, navegando nesse material todo.





22/07/2011 – Sexta-feira - Tocantinópolis - To/Porto Franco – Ma



Recentemente ganhei um livro que se chama “Retrato da Repressão Política no Campo / Brasil 1962-1985”, pouco antes de começar a viagem, numa visita ao Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural - Nead, do Ministério do Desenvolvimento Agrário. O livro traz o relato da luta de cerca de 43 pessoas que de alguma maneira dedicaram sua vida pelo direito à terra e muita vezes pagaram com o próprio sangue a fatura. Agradeço à Carolina Fleury, coordenadora de comunicação e ao Joaquim Soriano, diretor do Nead, que por ocasião de uma reunião em Brasília, gostaram bem da Rota do Sal e me presentearam com a edição. E como todo filme é feito em boa parte dos acasos, li alguns dos biografados e encontrei o padre Josimo... O “padre negro das sandálias surradas”. Sua vida se passou ao longo do rio Tocantins e sua ligação com a região e com as águas é forte, conta-se que sua mãe o teve dentro do rio, pois lavava roupa sozinha quando começou a sentir as dores do parto. Seguindo a Rota do Sal, aqui em Tocantinópolis é a primeira cidade que Josimo tem ligações, pois veio para cá aos 11 anos estudar no seminário da cidade. Então aqui começo a seguir seus passos... Virando a rua da padaria à esquerda e caminhando uns 600 metros chega-se ao seminário Leão XIII. Uma pequena estrada sobe um morro e chega num segundo portão, que conduz a um pátio. A construção é grande. Havia sido informado pelos caseiros que todos se encontravam na cozinha. Imaginei dezenas de estudantes candidatos à padre e seus mestres almoçando ou preparando o almoço, me senti um pouco no mosteiro do “Nome da rosa”. Atravessei os refeitórios vazios, até então sem encontrar vivalma. À exceção de um rapaz que cuidava dos jardins. Retornei para me informar com ele, que me disse que haviam uns cinco anos que o seminário estava parado, apenas o espaço era alugado para eventos e retiros espirituais. Na construção externa ao pátio haviam diversos quartos, todos numerados, como uma grande pousada. Perguntei se ele conhecia o padre Josimo, disse que só de nome. Me confirmou que ele estudara ali e pra minha surpresa contou que suas vestes, usadas no dia em que foi assassinado, estavam guardadas ali. Que se eu conversasse com o Don Giovane, bispo da cidade, ele me mostraria e que também era a pessoa indicada para contar sobre Josimo. Saí de lá com o telefone da casa do bispo. A andaça tinha dado resultado e começa a seguir os passos do padre negro. Liguei para o telefone e sua secretária informou que Don Giovane só retornaria no dia seguinte de uma viagem.

Na parte da tarde gravamos com a família de Chico Queiroz, comerciante fluvial, que empreendeu diversas viagens à Belém. Gabi conversou com uma de suas netas, que muito gentilmente convidou vários tios, filhos de Chico, para o encontro conosco. A conversa foi gravada na varanda da casa, que permanece fechada o ano inteiro, para receber um julho, temporada de praia, a família, cujos membros espalhados por diversas cidades do Brasil, tem a tradição de se reunirem, inclusive é o mês da festa familiar, que hoje cresceu tanto que é aberta a todos, mediante aquisição de ingresso. Vários filhos de Chico Queiroz, que fora prefeito da cidade por diversos mandatos, haviam ido com ele à Belém nos motores. A filha mais velha foi quem teve a primeira bicicleta da cidade! E um dos irmãos quem trouxe a segunda moto, tudo importado, tudo da grande metrópole do norte do país e centro de compras.

Da casa dos Queroz seguimos para a de seu Antonino, antigo motorista dos barcos. Sentamos nas cadeiras de macarrão na calçada beira rio. Ele falou. Falou. E depois falou mais um pouquinho. Pedimos pra gravar e ele disse: “Espere aí, logo mais a gente vê isso.” Se esquivou por três vezes! Volta e meia ele perguntava se estávamos gravando e dizia que a história que contava era “confidencial”. No final das contações ele disse que chamaria um amigo na noite seguinte, que sabia mais histórias e os dois gravariam.





23/07/2011 – Sábado - Tocantinópolis - To/Porto Franco – Ma



O sonho do sonho dos outros”



Liguei pro bispo. Falou que estava muito ocupado naquele fim de semana e que não poderia me receber. Perguntei sobre as roupas do padre Josimo e ele disse que o seminário precisava de uma organização geral e que ele não sábia onde estavam... Achei ele de pouca vontade de qualquer movimento para o filme e me resignei em não ter as imagens das roupas sujas de sangue. Imaginei que ele queria guardá-las para quando alguém, daqui cinquenta ou cem anos, recebesse alguma graça do padre Josimo e este se tornar um santo, suas relíquias estariam inéditas. Pode ser, um bispo contra a reprodutibilidade técnica das roupas santas. De qualquer forma ele me disse no final da ligação que padre Vicente, pároco de Tocantinópolis seria o mais indicado, pois estava na cidade há mais tempo e havia conhecido pe. Josimo. Isso me deu novos ânimos, mas a preguiça com o (ou do) bispo continuou. Tentei localizar o padre neste dia sem sucesso.



Eu estava num caminhão com toda a tralha da Rota do Sal, encostamos numa trilha na estrada de terra e aparece o kalunga Mochila, citado nesses escritos do mês de abril e maio. Fico feliz de revê-lo. Descemos em sua casa. Há um caminho cimentado, ando poucos metros e já estou na comunidade do Açude, em Minas Gerais. O caminho se ramificava em vários outros, que eram as trilhas de uma praça. Algo parecido com uma conversa que eu e Flor tivemos nessa expedição, seu sonho se tornou imagem do meu. Penso em Raul: “Sonho que se sonha junto é realidade”. Avanço um pouco mais no caminho, chego à praça ecológica da cidade de Pedro Afonso – To, lá Fabrício, idealizador do projeto, está satisfeito porque seu desejo de ver o projeto da praça concluído se tornava realidade. Isso ele havia me dito quando fomos conhecer e gravar na praça. Uma noite que sonhei o sonho dos outros.







24/07/2011 – Domingo - Tocantinópolis - To/Porto Franco – Ma / Aldeia Apinajé



Acordamos cedo para ir ao casamento na aldeia Apinajé chamada Mariinha. Eu, Ton, Baxter e Flor



Novamente o rio nos leva para uma aldeia indígena. River movie, aportamos em diversas margens. Coincidiu que era dia de festa, pois um jovem casal se casaria. Seguimos de Tocantinópolis para a aldeia num pequeno caminhão fretado, pelo caminho demos carona para índios que moram num bairro mais afastado da cidade. Descemos direto na casa do cacique Joaquim Apinajé, que nos recebeu com bastante simpatia, providenciou cadeiras e pediu que sentássemos na sala da sua casa, feita de pau-a-pique e cobertura de folhas de palmeira. Quando caminhávamos para o local da festa, Josivan Vilanova, funcionário da Funai que nos acompanhava, se aproximou de uma cerca de arame, onde do outro lado havia uma casa e um pessoal sentado no quintal. Abaixou a cerca pra passarmos e nos apresentar para o povo. Mas o dono da casa se levantou e ordenou que não entrássemos, ou que Josivan não entrasse. Não entendi o motivo da dureza, aparentava estar um pouco ébrio. Seguimos caminho e depois este senhor apareceu mais calmo e pediu que tirasse foto dele e do seu irmão. Tudo em paz. A festa começaria em poucas horas e não duraria muito tempo. Os noivos já estavam pra chegar e logo se iniciaria a pintura de seus corpos, que também receberiam ornamentos feitos de missangas e penas coloridas. Enquanto esperávamos, gravamos uma conversa com o cacique, que falou da necessidade da manutenção da cultura apinajé pelos mais jovens, que estava feliz com a nossa participação na festa e gostava da ideia de ter um registro audiovisual de seu povo. Nos mostrou um dvd que havia adquirido numa viagem à Brasília sobre o movimento acampamento “Terra Livre”, manifestação indígena na capital do país. Disse a ele que o objetivo do nosso filme, a Rota do Sal Kalunga, é mostrar as diversas faces da nossa cultura, principalmente para os mais jovens, por isso prevemos a distribuição gratuita do filme em diversas escolas públicas. Os apinajés presentes nos olhavam curiosamente e se aproximavam para saber de onde vínhamos e o que fazíamos ali. Pediram também que fizéssemos diversas fotos, dos casais, das famílias... as quais vamos mandar posteriormente, como fizemos nos kalungas. É bom estar entre os índios e conversar com eles, tem uma simpatia, um acolhimento e um paz muito interessante. Josivan também destacou essas características sociais deles. Para o filme também obtivemos um relato curioso de como os ancestrais do ancião Abílio Apinajé retiravam o sal através da queima de uma espécie de planta e que seu consumo era mínimo, até o contato com os cupem (homem branco). Foram feitas 364 fotos nas seis horas que passamos na aldeia. Pouco ou muito não sei. O suficiente para quem artesanalmente colhe de bateia o ouro do aluvião. Umas das coisas que mais me chamou a atenção foi o olhar sério da jovem noiva de 13 anos, que pelo meu filtro, parecia certa tensão, talvez a mesma das noivas de qualquer cultura. A simplicidade de tudo, reflexo da falta de recursos, de alguma maneira consterna, eram distribuídos para os convidados tubaína e pão doce repartido em duas ou três partes. Mas de toda maneira a alegria prevalecia. Uma senhora me perguntou da onde era e pediu um dinheiro pra poder filmar. Expliquei que já tinha gravado com um monte de gente e que não poderia pagar todo mundo, que uma forma de retribuir era distribuindo o filme nas escolas, inclusive na escola da aldeia. Primeiro fez cara de quem comeu e não gostou, depois ficou tranquila e continuamos nossa conversa. Um outro moço veio perguntar onde ia passar o filme e disse “joga no jornal que nós vê!”





25/07/2011 – Segunda-feira - Tocantinópolis - To/Porto Franco – Ma



Pela manhã fizemos uma reunião de equipe para definir os próximos passos da expedição. A estratégia é seguirmos para Marabá, onde vamos aguardar a finalização do apoio do estado do Pará. Baxter fotografou uns documentos de época que o secretário de cultura de Porto Franco nos disponibilizou. Dentre eles um jornal que continha um anúncio de uma "casa de sal”, depósito e venda da mercadoria em Belém do Pará. Chegando lá vamos resgatar grande histórias desta fase contidas no destino final da nossa longa rota. Longa e doce rota do sal.



Continuo seguindo os passos do “padre negro das sandálias surradas”. Passei pela quinta vez na casa paroquial. Desta vez tive sorte. Ou apenas estava desligado dos dias da semana, pois sábado e domingo, ela fica fechada mesmo! O padre Vicente estava lá. Expliquei sobre o filme e a expedição, da minha intenção de gravar com ele sobre o padre Josimo. Ele contou também de suas próprias andanças pelo rio, quando este era a principal forma de se transitar pelo centro oeste. Disse que não queria gravar mas expliquei pra ele que era importante e coisa e tal e marcamos para depois de meia hora. Foi a conta de passar no hotel, lavar todas minhas roupas, pois viajava no dia seguinte, já eram 14h30 e se não lavasse agora ficaria sem roupa limpa e depois a roupa não secaria a tempo. Catei o equipamento e voltei pra secretaria da paróquia. Novamente o pe. Vicente disse que não ia gravar. Falei que pra quem está acostumado a dar sermões uma entrevistinha não era nada! Ele disse que não, que me daria um livro sobre o padre Josimo e uma foto atinga do rio Tocantins. E que com esse material teria bons elementos pro filme. Falei com ele que o material era ótimo, mas que o filme é som e imagem, que a partir dele as pessoas vão para os livros, conhecendo um pouco da história do Josimo, que entra no filme quando abordar a questão da terra, que é uma problemática comum em qualquer lugar do Brasil, seja em terras kalungas, indígenas... Enfim o convenci. A conversa foi muito boa e emocionante. Conviveu bastante com o padre assassinado e inclusive foi quem o ordenou. Depois me convidou para ir ao seminário, onde pude ver, filmar e fotografar a camisa e a calça, manchadas de sangue, usadas por Josimo no dia de sua morte... Até aqui pelo que tenho visto foi um sujeito que muito se importou com as desigualdades e lutou até o fim contra elas.





26/07/2011 – Terça-feira - Tocantinópolis – Itaguatins / Praia Sumauma



Acordei 5h30, pois sairíamos do hotel as 7h30, então teria uma hora e pouco para escrever um pouco. Queria atualizar algumas fotos no meu diário do site. Acabou que o carro que nos levaria para a beira do rio atrasou bastante e saímos tipo onze e pouco. Paramos para abastecer nossas garrafas d'água na casa paroquial, a água do hotel era de um poço artesiano e salobra. Me encontrei com o pe. Vicente novamente, ele abriu o salão onde as missas estavam sendo celebradas enquanto a catedral era reformada. Me mostrou uma santa de mais ou menos um metro e meio de altura, imagem barroca, trazida de Portugal. Disse que os índios apinajés haviam assaltado o barco que trazia a imagem de Belém. Levaram a imagem para a aldeia, depois padre João, que era político na cidade também, foi à aldeia e retomou a santa. Porém os índios nunca aceitaram a perda da santa, que inclusive teve seu manto, originalmente vermelho, pintado de azul, na tentativa de convencer os apinajés de que esta era outra imagem. No fim das contas, a aldeia de onde a imagem foi recuperada ficou se chamando Mariazinha...

Remamos 49 quilômetros neste dia e atravessamos as cachoeiras do Croazão e Taury, com ajuda de um pescador, que foi nos guiando. A passagem pelo Croazão foi bem emocionante, uma corredeira em “S”, com bastante volume d'água.

Fizemos uma entrevista muito legal com o pescador que nos guiava, que disse ter orgulho da profissão e gostar demais do rio. Disse não entender como é possível morar numa cidade sem rio!

Aportamos na praia de Sumauma. Com bastante areia e algumas barracas, pudemos tomar uma cerveja gelada nessa pequena ilha e comer uma corvina frita... O friozinho da noite foi curtido na rede, dentro do saco de dormir.

Logo depois que chegamos o caiaque de Emerson e Dedé fugiu, escafedeu, queria ir pra Belém logo e tomou o rumo da correnteza. Sorte que Baxter percebeu e quando eles saíram para o resgaste com a voadeira, o caiaque estava sendo rebocado por um pescador, que o trazia de volta pra ilha!



27/07/2011 – Quarta-feira - Tocantinópolis – Itaguatins / Praia Sumauma

Saímos de Sumauma por volta das 8h. O dia amanheceu lindo, filmei um pouco uma névoa que pairava rente à agua do rio, acompanhando a correnteza. Logo depois da ilha apareceram uns remansos, um trecho de rio bem largo. Paramos numa pequena praia com algumas cabanas de palha e nos informamos que Descarreto estava bem próximo. Este local, um bairro de Itaguatins, durante anos foi utilizado como embarque e desembarque dos motores que subiam e desciam o rio Tocantins, vindo ou indo para Belém. Seguinte: os barcos, por exemplo, vinham de Belém carregados de sal, tecidos, cerveja, vinho etc, paravam em Itaguatins, eram descarregados e subiam a cachoeira vazios. Normalmente quem fazia a travessia era Toinho Piloto, o melhor piloto para se passar na cachoeira do Descarreto. Segundo dizem, ele recebeu um anel mágico, que possibilitava sua passagem pelo perigoso trecho, sem bater nas pedras. Os barcos faziam fila para que ele os atravessasse. Inúmeros acidents ocorreram no local e muitas vidas se perderam, o que ocorre até hoje. A mercadoria era transportada no lombo de animais, nas costas dos homens e posteriormente nos caminhões que chegaram na cidade.

Paramos no Descarreto e encontramos Jairo, o prático que atravessou as duas lanchas a motor. Realmente o trecho é perigoso e se o piloto não conhece o local, a chance de um acidente é muito grande. Fomos seguindo a lancha e atravessamos em segurança. As fotos e as filmagens ficaram bem legais.



A praia de Itaguatins é linda, a mais bonita até agora. Muitas pedras, o rio azulzinho... Dava pra ficar uns dez dias aqui curtindo. A pousada dá vista pro rio, que enfeitiça e apaixona.



28/07/2011 – Quinta-feira - Itaguatins



Coisa de água”



Hoje o processo pra começar o dia e as filmagens foi meio lento. Tinha mapeado alguns personagens na noite anterior enquanto tomava uma cerveja na beira rio. Surge o irmão da dona do bar e me convence a tomar uma saideira enquanto me contava algumas histórias. Ele havia sido do Movimento dos Atingidos por Barragens, enquanto estudava no Rio Grande do Sul. Disse que em breve, a qualquer momento, não se sabe quando também farão uma barragem por aqui. Então pra mim não tem como ver esse rio correndo sem um sentimento de despedida. Espero revê-lo antes de seu afogamento. Espero que alguma fonte de energia menos impactante seja aprimorada antes disso...



Saímos para a casa de dona Eudoxa, que segundo muitos nos falaram, é uma senhora de 110 anos que tinha boas histórias. Ela estava cansada e ia dormir um pouco, pediu para voltarmos lá pelas 16hs. De sua casa passamos na casa do piloto João. A entrevista foi fenomenal. Ele, seu irmão e um amigo, o Samuel, relembraram ótimas histórias, embalados por uma caninha. Tomei um pouco com eles também pra entrar no clima e rimos bastante. As declarações de amor deles pelo rio foram emocionantes e só me fizeram gostar mais ainda dessa coisa de água.



No fim da tarde recebemos eu e Dedé um ilustre convite da produtora de Laís Bodansky, para palestrar no encerramento de uma oficina de cinema que eles estão desenvolvendo em Açailândia. Vai ser legal. Discutimos a melhor estratégia para nos deslocarmos até lá, pois Açailândia não está na beira do rio.



29/07/2011 – Sexta-feira – Itaguatins / Imperatriz / Açailândia



Recebemos um convite da Buriti Filmes para fazer a palestra de encerramento em Açailândia do projeto Oficinas Tela Brasil na cidade. Ficou acertado que a produção mandaria um carro buscar eu e Dedé no hotel. Saímos cedo de Itaguatins, o Jairo, que havia nos guiado pelo Descarreto, nos mostrou o caminho das pedras das pequenas corredeiras rio abaixo. Desceu no seu motor, após a cachoeira paramos para nos despedir, agradecer seu trabalho, remunerá-lo e gravamos uma conversa com ele. Muito gente boa. Seguimos para Imperatriz remando bem com a correnteza do velho rio a favor. Deixei Itaguatins com saudade, pois a praia era muito bonita, de frente pro hotel e o sol da manhã e do fim da tarde era inspirador.



A chegada em Imperatriz foi um tanto quanto decepcionante, pois tinham duas descargas de esgoto caindo no rio. Numa delas uma senhora pescava entre as águas cinzas de dejetos dos 240 mil moradores da cidade e o verde do Tocantins. Cheirava. Eram quase 13 horas da tarde. Nosso compromisso era às 14 horas, no porto da balsa, com a equipe da Rede Globo do Maranhão, para o jornal estadual. Um dia, se eu entrar ao vivo na Globo, vou dizer umas boas sobre a tendecialidade da emissora e recomendar que os espectadores assistam ao documentário “Muito Além do Cidadão Kane”. Uma vez fui dar uma entrevista em BH com a camisa do MST, mas eles fecharam o quadro e cortaram. Tem que ser ao vivo. Vai ser divertido.



Terminada a entrevista com a equipe, eu e Dedé nos despedimos do pessoal, que seguiu remando e nós para a Açailândia. Fomos recebidos pela Marina que nos explicou o funcionamento do projeto: um grupo de 15 jovens recebe aulas durante uns 14 dias e produzem curtas. Nossa missão era conversar com eles por cerca de uma hora, falar da nossa trajetória, projetos, filmes, da Rota do Sal, enfim desse vício todo chamado cinema. Sempre curto muito esses momentos, principalmente quando o público está interessado e participativo. Nesse dia eles estavam vidrados. Falei do meu começo e do meio. Do algo que fiz até hoje e como. Falei de cifras e sentimentos. Gosto mesmo é das faíscas que saem dos olhos das pessoas. E alguns deles brilhavam bem. Não projetei nada. Mas alguns trechos dos meus filmes passaram em suas cabeças. Depois assistimos aos seus filmes e, a pedido da produção, tecemos comentários. Espero ter podido contagiar um pouco com a minha fala, como já fui por outros que ouvi e tinham um pouco de magia ao falar. Vai treinando.



Jantamos uma picanha, tomei umas Heineken e na estrada pra Imperatriz vi sonho. Acordei na porta do hotel.



30/07/2011 – Sábado – Imperatriz-Ma / Sampaio-To



Acordei bem, falei uma hora no tel com a Dani e estava feliz. Dedé saiu pra ir ao banco. Já nos despedimos pois ele ficaria em Imperatiz para buscar Sabrina no aeroporto, às 14hs. Andei um pouco pela cidade, pensei no resto do pessoal, que por essa hora começa a descer o rio e deviam ter dormido em alguma praia. Passariam por Praia Norte e nos encontraríamos em Sampaio. Desci até o porto, assuntar se havia um barco de linha para Sampaio. Negativo, apenas para Praia Norte. Meu plano era seguir descendo pelo rio, prosear com alguns passageiros do barco e continuar pertecendo à Iemanjá. Mas tive que seguir “por la carretera”. Do porto pra praça da União foi uma caminhada lenta, apreciando a arquitetura da cidade, vendo a cara do povo, as portas fechadas de sábado. Fazia alguns dias que eu gostaria de construir um desidratador solar de frutas. A idéia era usar material reciclado. Precisava de algo retangular, como uma assadeira, uma gaveta... Em Tocantinópolis até havia ganhado uma lata de tinta, mas estava cheia de massa corrida por dentro e cortar ela no formato que precisava daria um trabalho sem as ferramentas apropriadas. Caminhando pelas ruas de Imperosa, passei por uma gaveta abandonada no pé de uma árvore. Dei cinco passos, diminuí o ritmo, meus instintos de coletor de bagulhos velhos veio à tona rapidamente. Cato coisa demais na rua. Vício besta e gostoso. E como precisava da gaveta, era uma colheita e tanto. Sorri sozinho andando perdido no meio do Maranhão. Catei a gaveta e segui meu caminho. Pensei se aconteceria como vários objetos objetos que cato na rua, levo pra casa e a serventia deles pro inútil me faz retornar com eles para o lugar de onde vieram. E talvez pertençam, até que outro catador deles se sirva. Se o desidratador não vingasse, a gaveta serviria a outro, ainda que em fogueira.



Estava achando bom andar sozinho. A solidão sempre me foi cara, minha família é grande, tenho 5 irmãos, casa sempre cheia. Quando saí de casa foi pra casa Avessal, onde morávamos, trabalhávamos, festejámos e abrigávamos quem chegasse chegando. Estava com saudade do povo do rio, como de vez em quando chamo meus amigos que descem o rio comigo. Trupe de ribeirinhos nômades gravadores de memória. Mas também sentia o gosto bom daquelas poucas horas que estaria só e anônimo. De Imperatriz segui pra Augustinópolis, lanchei e arrumei um carro para Sampaio, que fica 14 km dali.



Em Sampaio parei pra arrumar um hotel antes de descer pro rio encontrar a equipe. Sabia que estava na área de atuação do Pe. Josimo e indaguei a dona da pousada se ela o conhecia. Disse que sim, que havia alcançado duas missas que ele celebrou. Me disse que sua mãe morava na cidade. Meus olhos brilharam. Seria interessante conhecê-la, que de certa forma é aproximar-me do filho. Distinguir as feições comuns, o tempo que cada pai carrega de seu filho, da dor e da alegria e das coisas invisíveis que conectam os que são feitos um do outro.



Então fiquei com esse nome na cabeça: Dona Olinda. Tinha que encontrá-la. Me lembrei muito de d. Lúcia Rocha, mãe de Glauber Rocha, com quem estive em duas ocasiões. De sua paz resignada e de sua luta pela preservação da memória do filho. E do arrepio quando na Jornada Internacional de Cinema de Salvador sua presença foi anunciada na mesma platéia em que estava. Fui lá apertar sua mão e trocar uns sorrisos. Elogiei a obra do filho do qual sou fã. Fui perguntando onde dona Olinda morava. Cheguei a uma chácara no final de uma rua e a casa era bem no meio do terreno, seria difícil gritar e ela me ouvir. Perguntei pros vizinhos se algum deles tinha intimidade suficiente pra ir lá chamá-la. Não... Mas indicaram que pela rua de baixo conseguiria me aproximar mais da casa. Fiz isso. Ainda assim teria que entrar no seu terreno pra chamá-la. Perguntando acabei na porta da casa do Lucas, que trabalha com dona Olinda e se dispôs a me levar lá. Da porta gritamos por seu nome por uns cinco minutos, Lucas já estava por desistir e eu imaginando que não a conheceria, pois no outro dia partíriamos bem cedo. Até que vimos um vulto passando atrás da porta de vidro. Pequena e desconfiada se aproximou, por eu estar com um conhecido dela foi mais fácil. Me apresentei, contei um pouco da expedição e de vez em quando via seu sorriso bonito formando. Falei que gostaria de conversar com ela sobre o filho, ela disse que tudo bem. Marcamos pro outro dia bem cedo.



A noite dormimos na praia, pois se fossemos para o hotel os barcos a motor ficariam sozinhos e vulneráveis na beira do rio. A praia era bem extensa, e apesar de uma festa arrochada que acontecia em uma de suas bandas, dormimos bem.





31/07/2011 – Domingo – Sampaio – To / São Sebastião do Tocantins



Acordamos cedo no acampamento. Na noite anterior, enquanto caminha pela praia, um casal de aves voou sobre minha cabeça, dando grito de alertas. Falava ao telefone e andava distraído, quando minha lanterna iluminou o ninho feito na areia, com dois ovos. Senti por ter assustá-los e voltei pelo mesmo caminho. Pouco depois eles retornaram ao ninho e sossegaram.



Parte da equipe seguiu comigo pra prosear com dona Olinda e outra parte ficou no acampamento, guardando as barracas e arrumando os barcos pra partida. A fala pausada, o olhar calmo e os sorrisos entre brisas que sopram mansas marcaram a manhã em que estive mais próximo de Josimo. Ouvimos. Mareamos os olhos e alimentamos a admiração deste homem, que como muitos, poucos, lutou. O rio descendo nos traz os passos de Josimo. A história se conecta de conversa em conversa, pela fala de quem viu e viveu. Nos despedimos e seguimos a pé para a beira do rio, onde o sargento Miranda nos aguardava.

Este dia estava quente, não que isso fosse novidade, mas o calor aqui ainda pode te surpreender, quando você acha que já se esturricou o suficiente. Então, quente. Banhos no rio pra arrefecer, como nos velhos tempos dos batelões, onde seus remadores iam apenas com um pano tapando as partes e volta e meia davam mergulhos.



São Sebastião chegou antes do que imaginávamos. Não me lembro agora quanto remamos. Ao chegar na cidade navegávamos pelas margens. Um grupo de crianças veio nadando em direção ao barco, eu e Flor remamos na direção deles. Uns dez. Começaram a festar, subir no barco, perguntar coisas... Ficamos ali rindo com eles, curtindo e esperando o caiaque virar. Tentaram e conseguiram, riram demais. Nós também. Tiramos a água dos cokpits e nos despedimos.



A noite foi aniversário do Dedé, chapamos uma na praça. Marinheiros e marinheiras bêbados andando pela velha “Bastião”.





01/08/2011 – Segunda-feira – São Sebastião



Vivemos o momento do Josimo, personagem vai se construindo frente nossas lentes... Segui no seu calço. Dona Olinda tinha mes indicado que procurasse por Jovita e Ilda, que haviam convivido com seu filho Josimo. Uma delas tinha adoecido, a outra trabalhava na horta e só poderia nos receber no dia seguinte. Conversa vai, conversa vem e nos falaram da professora Edna, que era amiga de Josimo. Procuramos por ela em sua casa. Nos recebeu, expliquei pra ela da expedição, do filme, da memória ribeirinha e ela me olhava nos olhos, com uma semi interrogação na expressão. Quando falei do pe. Josimo ela sorriu e disse que agora entendia por que estávamos ali. Aceitou gravar e em poucos minutos estávamos ouvindo palavras daquelas que tocam a alma, fazem chorar e agradecer por estar vivo, prensando nesses chãos diversos as plantas dos meus pés. Mais luz sobre a face do padre negro. Che Guevara de batinas do Bico do Papagaio. Padre black power. Josimo roots. Libertário. E toda e qualquer graça que traga em palavras alguma poesia ou clichê sobre esse homem. Fiquei sabendo que além de lutar pela questão da terra, também lutou pelos direitos da mulher, dos negros... Um lutador completo segundo Edna. Ela nos falou de dois irmão que muito se interessam pela história do líder: Dávio e Dário. Marcamos pro dia seguinte uma ida a Buriti, cidade ao lado, onde Josimo estava enterrado.



02/08/2011 – Terça-feira – São Sebastião do Tocantins / Pedra de Amolar / Esperantina



Acordamos cedo e fomos pra casa da Edna. Eu, Baxter e Flor. Dávio nos acompanhou. Fomos direto pra igreja que possui um grande painel, com cerca de 10 x 3 metros. Dávio nasceu no ano em que padre Josimo foi assassinado, meses depois. E é um grande admirador de sua coragem e determinação. Foi nos mostrar a igreja. Eu já estava com a câmera na mão e a Flor com o som ligado. Ele começou a falar no altar, apresentando os detalhes do painel, que retratava o assassinato, o enterro, cercas partidas simbolizando a resistência contra o latifúndio... Começou a discursar emocionando, como se a igreja estivesse cheia, eu concentrado em suas palavras, conhecendo mais a vida de Josimo, de fontes próximas, nos locais que ele viveu, no altar onde ele pregava... A fotografia estava linda: Dávio falando com o painel ao fundo, colorido... Josimo ensanguentado sendo amparado pela mão por um Jesus moreno. Dali fomos pra sala atrás do altar, onde está a sepultura de Josimo. Um grande retrato dele, flores, uns dizeres seus pintados na parede... Dávio terminou sua fala. Um silêncio terno e cúmplice recaiu sobre nós cinco e chorei. Depois remando naquele mesmo dia pensei e tentei chorar muito mas não consegui. Misto de alegria, admiração e tristeza. E Dávio se tornou um personagem imporante na construção fílmica de Josimo. E ele veio conosco por acaso, pois como não conseguíamos abrir a porta do carro, Edna o chamou... Como o acaso é belo.



Remamos 57 km nesse dia, um dos mais longos. Aportamos numa praia muito bonita. Eu, Flor e Sabrina demos uma volta correndo na praia, pra encerrar o duatlon. E uma macarronada deliciosa com carne moída. Sim carne foi acrescentada na dieta, pois compramos um isopor. Ameaçava uma chuva braba, mas não se aproximou.