sábado, 11 de junho de 2011

River Movie


Filme de Rio -Cardes Amâncio

Pela frente o inesperado. O imprevisível encontro com o real. Estamos prestes a realizar um plano que já vem sendo pensando há cinco anos e qualquer previsão de possíveis resultados não se igualará aos alcançados. Nessa longa estadia em campo, apesar de todos os mapas e gps, a direção será ditada pelas possibilidades dos encontros que pretendemos ter nos 2.400 km de Rota do Sal – dos Kalungas até Belém do Pará.

Comolli ressalta a “impossibilidade do roteiro” para a produção de documentários. E isso é doce. Incerto. Temos o norte, mas a cada curva de rio uma nova cabana, uma nova canoa a parear com as nossas, uma vila, um quilombo, notícias de tempos distantes e retratos de hoje. Seguimos pro norte, vindo do centro-oeste, parte deste enorme país, que como algumas outras, por muito tempo permaneceu isolada e com difícil acesso. O Tocantins, grande rio, foi por muitos séculos o principal caminho de chegada à essa região e também o mais importante meio para se alcançar Belém, centro mais desenvolvido da porção norte, como também ponto de partida para as outras grandes cidades brasileiras.
Como temos os filmes de estrada, este é um filme de rio. River movie. Antes disso é um filme dos kalungas. Uma homenagem nossa como admiradores que somos do povo brasileiro, da resistência e da luta pela vida, que levou os kalungas a se aquilombarem entre as serras e os vãos do norte goiano. Queremos ouvi-los, queremos fazer o filme que eles quiserem, fundir a autoria na mais ampla possibilidade, num filme em que a fronteira entre equipe e personagens confunda-se, mingue-se. E como na nossa primeira obra documental, “Candombe do Açude: Arte, Cultura e Fé”, fazer um filme pra passar na sala de visita, deles, ou de qualquer outra casa do Brasil. Passar nas salas de cinema. Como esquecer quando Iaiadá do Açude vira pra mim e diz: “Tá vendo Cardes, agora a gente tem cinema aqui!”. Enquanto o pessoal da comunidade assistia ao filme que fizemos, com a tv e o dvd do lado de fora da casa, e bancos e cadeiras, em fileiras... 
 
Terça-feira, 19 de abril de 2011. Três horas da madrugada insone. Sentindo a comum perda de sono antes das grandes viagens que também sofre meu amigo Leandro Comini, companheiro de perambulações, assim como Dedé, trio inseparável de aventuras. Durante nossa época de faculdade e anos seguintes sempre estávamos arrumando algo. De escaladas pelas montanhas de Minas à viagens clandestinas para o Rio de Janeiro em vagões de minério. De pedais interestaduais à expedições nas canoas canadenses do Luiz , na Serra do Cipó. De maneira arraigada a aventura está nas nossas veias. Deus conserve e aumente.

Caminhava eu na orla de Vitória – ES, amanhecia voltando de uma festa do Vitória Cinevídeo, um dos primeiros festivais que participei. Apesar de estar tudo lindo uma dose de tédio me chegou. Olhando aquele mar, aquela curva azul do céu que se junta com ele... Peguei meu celular e digitei um sms pro Comini, lançando a idéia da próxima viagem: uma expedição em algum rio. Chegar até sua foz... De volta a BH, com essa idéia fervilhando na cabeça, comecei as pesquisas. Primeiro passo era decidir qual o rio. Provavelmente algum rio de Minas Gerais. Passa se um tempo e Dedé fica conhecendo “uma menina muito massa” que passou um tempo num quilombo de Goiás. Tal quilombo era os Kalungas. Eu tinha ouvido falar dele por alto, pouco tempo atrás, numa conversa torta na Chapada dos Veadeiros, onde me disseram que o acesso lá era dificílimo e só se chegava de avião. Pus na cabeça que ia lá um dia. Então chega na Avesso Aline Cântia, numa amizade que começa a surgir e trazendo na bolsa um pedaço dos Kalungas em forma de dezenas de fotografias, na cabeça várias histórias que ouvira na sua pesquisa de campo pro mestrado e no rosto o sorriso de sempre, misto de admiração e alegria ao falar pra gente dos Kalungas. E das várias histórias que conta, uma chama bastante atenção: uma viagem longa, pelos rios, para buscar sal em Belém. Em plena escravidão, se arriscarem por um rio famoso pelas suas perigosas cachoeiras, era incrível. Era histórico. Era a Rota do Sal que surgia ali naquele momento. Como a vida é feita de bons e casuais encontros, ali terminava a busca do rio. Os Kalungas e o rio Tocantins haviam nos achado.
Falta apenas um dia para a minha partida e a adrenalina pré-viagem está alta. Faz parte. Faltam os últimos arremates burocráticos de produção executiva, os últimos check lists de equipamentos... A mala está quase pronta, pelo menos há quase um mês tenho quase tudo separado.

Um filme de rio no qual refaremos o trajeto antigo. Metade dele, pois os Kalungas ainda voltavam pra casa. Remar pelos próximos três meses rente à água, mesmo leito em que já navegaram antigamente índios, brancos e negros. De certa forma sentir a memória dessas águas que correm pro mar, mas retêm em translucidez imagens quase nítidas desses antigos passantes. Aportar nas margens, onde houve cabana ou trilha que leve a algum casebre para um dedo de prosa e busca de boas histórias pro filme. Detalhe é que neste filme a sua feitura, seu processo de produção, não se dissocia do produto. Os kalungas, o rio, os ribeirinhos, bem como a nossa equipe, são seus personagens. Geralmente como se desloca para fazer um filme, quais o veículo e as vias utilizadas, não importam muito, ficam relegados ao making of. No caso da Rota do Sal é primordial. Rio + Canoa. Combinação orgânica que com o mínimo de interferência possível (o casco de um caiaque de 40 cm de altura) nos mantém em contato próximo com o rio, pra não dizer somados a ele.

Sigo amanhã para os Kalungas e mal posso esperar pelo 13 de maio de 2011.

BHZ 19/04/2011

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